RELEASES E BIOGRAFIAS

JOÃO BOSCO LANÇA O SINGLE “O CANTO DA TERRA POR UM FIO”

Com um olhar voltado para a natureza e ancestralidade, artista lança primeira faixa de álbum inédito em parceria com Francisco Bosco e arranjo de Jaques Morelenbaum

“Quando me dei por satisfeito ao chegar no fim dessa canção (fonemas, sonoridades, ainda despidos de tradução e sentido) disse pra mim mesmo: é uma canção que vem do chão, da terra, do suor, do barro do chão, da fauna, da flora, do Poço Fundo…”  Assim começa o texto escrito por João Bosco sobre a música “O Canto da Terra por um Fio”, que chega nas plataformas digitais dia 15 de dezembro. Como em um ritual que invoca os espíritos da floresta, o single é cercado pelos sons dos pássaros, faz exaltação à Omama, divindade criadora dos Yanomamis e versos que falam sobre a luta dos povos originários.

O lançamento marca o início do novo projeto de um dos artistas mais consagrados da Música Popular Brasileira e corresponde à primeira faixa do próximo álbum de inéditas de Bosco, que será lançado em 2024 pela MP,B/Som Livre, seis anos após o premiado disco “Mano que Zuera”.

A faixa tem letra fruto de parceria entre João Bosco e o Francisco Bosco, com arranjo do violoncelista Jaques Morelenbaum.

Para Jaques Morelenbaum, fazer parte desse lançamento é uma grande honra:  “João Bosco é um dos grandes criadores da nossa música, tem uma obra vastíssima com parceiros geniais como Aldir Blanc, e agora vem o Chico Bosco com uma enorme força dramática para fechar o ciclo. A parceria entre pai e filho é uma coisa muito bonita. Então, ser parte desse evento na música brasileira é uma honra gigantesca pra mim. Muito obrigado, João Bosco, e que esse single seja o primeiro de muitos.”

Jaques destaca também sobre o significado da canção: A música fala de criação e destruição, sobre a criação do mundo, sobre a mitologia Yanomami, sobre a asfixia dos rios, a relação do homem com a natureza, sobre aqueles que preservam e os que destroem a natureza e os outros seres humanos.”

 

O canto da Terra por um fio

por João Bosco

Quando   me dei por satisfeito ao chegar  no fim  dessa  canção (fonemas, sonoridades,  ainda  despidos  de  tradução e sentido  ) disse pra mim mesmo: é uma canção que vem do chão, da terra,  do suor, do barro do chão, da fauna, da flora, do Poço Fundo…onde as pessoas vivem, trabalham, preparam a terra para semear, cantam em louvor ao que virá. É uma canção que eu diria Afro-Indígena, ou seja, tem a pegada rítmica/harmônica Afro e uma melodia que remete ao canto da floresta, ao campo, aos bichos, ao chão da terra e àqueles que a habitam… Estamos então numa paisagem de florescimento pois é o que tudo indica. Conversando informalmente como sempre faço com os meus parceiros, nesse caso, com Francisco Bosco, ficamos horas a fio a falar sobre tudo isso. Talvez o Brasil seja um dos raros países do mundo onde se pode discutir a Nação por meio de sua música popular. Foi exatamente nessa encruzilhada que o meu parceiro pensando alto disse que nesse momento, de passado bem recente, devíamos interpretar essa situação de uma maneira mais contemporânea:  Queimadas, em vez de Florescimento. Distopia em vez de utopia e por aí ia… Será que   essa   interferência em nossas descontraídas   reflexões   estaria sendo influenciada por “Omama”, a quem é atribuída a origem das regras da sociedade e da cultura Yanomami? Teria um Xapiri (espíritos auxiliares dos pajés) assentado em meu parceiro? O Brasil foi inteiramente afetado de maneira cruel por esse passado recente e que nesse momento estamos a nos deparar com a apuração desses acontecimentos, mas a nossa mata, nossa fauna e nossos indígenas tão exaltados pelos escritores, compositores, poetas e pela própria história   ardem em lava que mata tudo que sonhamos. Não é o Poço Fundo, mas o fundo do poço.  O canto da Terra por um fio é uma canção que dá a partida para um álbum que será lançado em meados de 2024.  Estamos interpretando essa canção: Violoncelista e arranjador Jaques Morelenbaum e eu, de violão e vozes. Gravação realizada no Estúdio Visom Digital, no dia e graça de Cosme e Damião (27 de setembro de 2023).

“Abricó-de-macaco”

Por Francisco Bosco

É uma árvore originária da Amazônia, mas tem a exuberância complexa da nação, ou melhor, da ideia de nação que aqui se afirma: no seu tronco, florescem e se conciliam Nanã Buruquê, Oxum, Jesus e um sambalelê nas escadas da Sé; todos os choros no samba-enredo de terna e linda melodia que é “Chora, chorões” (sutilmente reinventado de cabo a rabo pela interpretação de João Bosco); lógica de grupo e galho da roseira; um Tom Jobim agulhado, como se fosse Baden; Jurupari e dona Zezé, a muié que topa a parada de saia amarrada; Paulinho da Viola evocado num afrobeat entrançado pelo sopro de uma israelense; o ingênuo acalanto de Hammerstein e Rodgers, já revirado por Coltrane, agora africanizado de vez; e muito mais. Em suma, o sumo infinito desse Brasil brasileiro, sua vocação perseverante para realizar em si o verso do poeta (de resto, filho de sírio com sertaneja): entre meu ser e o ser alheio, a linha de fronteira se rompeu.

“Abricó-de-macaco” – João Bosco – DVD

Por Lucas Nobile

Já se conta quase meio século da estreia fonográfica de João Bosco. Desde que despontou no lado B de um compacto do Pasquim com “Agnus Sei” (feita com seu parceiro mais constante, Aldir Blanc), João transvê a arte como forma de alento e de elevação. Se fosse “só” isso já estaria de bom tamanho. Porém um ponto primordial, no caso de João Bosco, é que desde aquele distante ano de 1972 ele também compreende a arte como reação.

Ladeado de Aldir e de tantos outros parceiros – de Antônio Cícero e Waly Salomão a Chico Buarque, de Belchior a Paulo Emílio, passando por Abel Silva, João Donato, Caetano Veloso, Capinan, Nei Lopes -, João Bosco pensa sua música, a partir de seu singular violão, como instrumento de contundente contestação.

Assim como craques de outros saberes e fazeres artísticos (Glauber Rocha, Gianfrancesco Guarnieri, Plínio Marcos, Chico Anysio e Graciliano Ramos), João sempre tratou das miudezas e profundezas – incluindo os desvios – da alma brasileira. Com a diferença, em comparação com os aqui citados, que ele segue vivo e atuante.

Em tempos de calmaria social a música de João Bosco já seria significativa. Agora, num arrastado momento de naturalização de discursos e práticas fascistas, ela é essencial.

Neste novo trabalho – digno de figurar na prateleira das grandes obras, que, logo de cara instigam e já dizem a que vêm -, a provocação inteligente sobressai, de arrancada, no título: “Abricó-de-macaco”. A alegoria, proposta em parceria por João e seu filho Francisco Bosco, é tão complexa quanto bela. Um fruto tropical fechado, de casca dura, em forma de esfera; ameaçado de extinção, entressonha a esperança de uma estação vindoura para enfim abrir-se em flor. Se algo aí lhe soa familiar, não se espante. Afinal, é de um Brasil mergulhado em obscurantismos, com sua potência incubada num banzo, de que falam os autores.

É obra de espírito amplo, evocando a inesgotável fortuna de conhecimentos gestada nas bordas de uma nação continental. O que atravessa as 16 faixas aqui bordadas é o ouro cultural emanado das periferias do Norte (presente em “Senhoras do Amazonas”, parceria de João com Belchior) ou do Nordeste (pontuada em “Forró em Limoeiro”, do genial Jackson do Pandeiro, em espécie de suíte nordestina, com o perfume de Sivuca, João do Vale, Marinês e Gonzaguinha), do Brasil real, das periferias, dos subúrbios e dos morros cariocas. Aragem tão funda que IBGE nenhum é capaz de apurar ou traduzir.

Portanto, não é ocasional o encontro entre Os Tincoãs, de Mateus Aleluia e Dadinho, com Dorival Caymmi e Silas de Oliveira, na bem sacada junção de “Cordeiro de Nanã” e “Nação” (João Bosco, Aldir Blanc e Paulo Emílio), consagrada na década de 1980 pela iluminada voz de Clara Nunes. Assim como não são nada fortuitas as menções ao jongo de Aniceto do Império, à ancestralidade da Rainha Quelé (Clementina de Jesus), aos choros de Pixinguinha e Paulinho da Viola, aos sambas de Donga, Candeia e Sinhô, às macumbas de João da Baiana – todos presentes em “Cabeça de Nego”.

Da mesma forma, no mesmo DVD cabem um Brasil que tem como um de seus maiores capitais a diversidade e o sincretismo religiosos (“Terreiro de Jesus”) e um Brasil em que muito malandro – seja de colarinho branco, seja eleito pelo voto popular – se julga mais malandro do que a própria malandragem (“Profissionalismo É Isso Aí”).

Tal e qual num sonho de Brasil mais humanizado e aberto ao encontro, este DVD é feito de pontes. Elas se erguem, por exemplo, em “Chora, Chorões”, relembrando o dia em que o choro de Ernesto Nazareth, Waldir Azevedo, Zequinha de Abreu e outros mestres desfilou na avenida, no antológico samba-enredo apresentado pela Estácio de Sá, em 1985.

Neste extenso novelo de uniões em forma de alumbramentos, há também o elo entre a música norte-americana – pelo blues ou pelo jazz – e a música brasileira. Todas bebendo na mesma fonte, a música negra. É só ouvir o que João Bosco faz com “My Favorite Things” (clássico eterno de Rodgers e Hammerstein), com “Blue in Green” (disponível como faixa bônus, apenas na internet) ou com “Água de Beber”, de Tom e Vinicius, vertida em afrosamba à la Baden.

Todas elas, assim como a maioria das músicas deste DVD, são regravações. O que, no caso de João, jamais pode ser definido como um “cover”. Dono de identidade artística tão ímpar e marcante, mesmo quando apresenta obras que não são de sua autoria, João Bosco é um intérprete-compositor. Por suas mãos ou sua voz, canções que não são inéditas apresentam-se absolutamente novas. Na mesma linha do que ele fizera recentemente com “Clube da Esquina nº 2” (Milton Nascimento/ Lô Borges/ Márcio Borges) ou com “Coisa nº 2” (Moacir Santos). Seu violão e as divisões rítmicas de seu canto se reafirmam, mais uma vez, como algo da ordem das raridades.

Sem prejuízo, este frescor é revelado tanto nos números em que João Bosco vai só de voz e violão, como quando ladeado pelos excepcionais músicos com quem vem tocando há tempos: Ricardo Silveira, na guitarra; Kiko Freitas, na bateria; Guto Wirti, no contrabaixo. Confirmação de que com o passar dos anos o sujeito pode combinar maturidade com um espírito renovado e renovador – inspirado nos versos “A minha casa vive aberta/ Abri todas as portas do coração”, de “Água de Beber” -, João acerta ao se aproximar de gerações mais novas do que a sua. Isso se reflete nas participações das vozes de Alfredo del Penho, João Cavalcanti, Moyseis Marques e Pedro Miranda, do acordeon de Marcelo Caldi, do violão 7 cordas de Marcello Gonçalves e do clarinete mágico da israelense Anat Cohen.

Por fim, além de “Abricó-de-macaco”, a outra faixa inédita é “Horda”, feita também em parceria de João e Francisco Bosco. Nela, evocam-se inspirações de “The Duke” – sobrenatural gravação de Miles Davis e Gil Evans em tributo a Duke Ellington – e do inacreditável álbum “The Blues and The Abstract Truth”, de Oliver Nelson. Em tempos de invenções bizarras e distorcidas, como “pós-verdades” e afins, João e Chico jogam do mesmo lado do campo que Manoel de Barros, escultor do seguinte verso: “Há muitas maneiras sérias de não dizer nada, mas só a poesia é verdadeira”. A tabelinha entre pai e filho faz lembrar, e não é de hoje, de um imaginário encontro entre Zizinho (João) e Rivaldo (Francisco): dois craques de tempos diferentes, simultaneamente cerebrais e poéticos, incapazes de propor uma jogada burocrática ou pedante. Jogadores irrequietos e extraclasse, que, parafraseando o poeta Manoel, não gostam nem do som nem da palavra acostumada.

Auto Retrato

Há uma suspeita de que a escassez de cabelos na cabeça influi na quantidade do sono. Enquanto isso meu nariz aponta para a linha do nada onde tudo se reparte em idéias, ilhas e continentes. Meus olhos confirmam tudo. A minha boca é toda ouvidos para o meu coração. Os meus ouvidos atentam para outras bocas. 

Amamentado pelo meu violão, moro na estrada. Sem saber quem sou e nem porque vim, eu vou. Da primeira vez que nasci, lá pelo ano de 1946, trouxe comigo uma grande alegria para o meu pai que até aquele momento contabilizava o feito de cinco moças e mais os olhares interrogativos e desconfiados da colônia árabe pontenovense. Como primeiro filho homem ajudei em sua redenção.

Cresci em meio aos matagais, trilhas, mata-burro, veredas e grutas; descalço, tive os pés regulados para andar por esses caminhos ao som de pios de uma fauna alegre e ingênua; matuto, vivia contando estrelas, ouvindo carrilhões e sonhava muito. 

Quando os libaneses se reuniam em nossa casa, se entendiam naquela língua de quem gosta de montar em camelo. Eu achava aquilo meio estranho. Era como clamar no deserto.

Logo depois eu aprendi a fumar, matar as aulas de um Colégio Salesiano, e fui apresentado a um anjo de grande topete negro, envergado sobre uma guitarra, cuja canção dizia para mim: Vai João, ser torto na vida. 
Passei pela terra de Aleijadinho e o meu coração que até então era vadio, ficou barroco. Subi e desci ladeiras. Descobri que na vida existem mais hipóteses que teoremas. Supor é melhor que demonstrar e na dúvida mora a vontade de continuar.

Foi assim que deixei a memória, o patrimônio de séculos construídos pelas mãos do homem, o calçamento em forma de pé-de-moleque, o silêncio das almas, o barulho interno de minha alma. Calcei os sapatos, peguei o trem e vim pra cá, onde as ruas são largas, retas e simétricas; as sirenes são cortantes e os pastores das almas são barulhentos. O vizinho não mora ao lado, as árvores são introvertidas e os pios das aves são intrigantes. 

Quando nasci da segunda vez, o meu coração bateu aflito. Mas logo que vi o mar, serenei pois tudo que havia existido voltou subitamente e volta sempre quando estou caminhando no calçadão que vai do Leblon ao Arpoador. Aí, o que foi e o que poderia vir a a ser andam comigo, incluindo as sementes, o pão de queijo e a goiabada cascão. 

Os meus filhos Francisco e Júlia nasceram aqui mesmo cujo padroeiro (São Sebastião) é o mesmo da minha cidade natal. Ângela, minha companheira inseparável em todas essas andanças e mãe dos nossos filhos, foi criada em Ponte Nova mas também é natural da Cidade Maravilhosa. Bem que eu devia ter desconfiado que aquelas Congadas e Folias me trariam até Clementina de Jesus. O meu coração ficou ativo e cantou: “Atividade no Abano / Antes que o fogo se apague”.

Eu sou do signo de Câncer, por isso prefiro uma toca, entretanto aprendi a contrariar o meu signo várias vezes, por isso gosto tanto de viajar por esse mundo afora, só não consigo contrariar o meu signo de mineiro. 

Eu sei que esse deveria ser um retrato pintado ou desenhado, falado ou escrito do autor pelo próprio autor, mas quando se trata de revelar-me, prefiro assim, meio de lado (do jeito que a gente anda no samba), no lugar de frente ou verso. O silêncio, a liberdade e a terceira margem do rio foram inventados em Minas Gerais. 

O amor é o meu dia de folga. Meu melhor trabalho é a minha família, minha alegria é Rubro-Negra. Quem sabe de mim é o meu violão. Nesse fim de semana, se eu não for pra Belô, a gente se cruza do calçadão.

João Bosco lança Mano que zuera

Reunindo parcerias com Chico Buarque, Aldir Blanc, Francisco Bosco, Roque Ferreira e Arnaldo Antunes

Há uma suspeita de que a escassez de cabelos na cabeça influi na quantidade do sono. Enquanto isso meu nariz aponta para a linha do nada onde tudo se reparte em idéias, ilhas e continentes. Meus olhos confirmam tudo. A minha boca é toda ouvidos para o meu coração. Os meus ouvidos atentam para outras bocas. 

Amamentado pelo meu violão, moro na estrada. Sem saber quem sou e nem porque vim, eu vou. Da primeira vez que nasci, lá pelo ano de 1946, trouxe comigo uma grande alegria para o meu pai que até aquele momento contabilizava o feito de cinco moças e mais os olhares interrogativos e desconfiados da colônia árabe pontenovense. Como primeiro filho homem ajudei em sua redenção.

Cresci em meio aos matagais, trilhas, mata-burro, veredas e grutas; descalço, tive os pés regulados para andar por esses caminhos ao som de pios de uma fauna alegre e ingênua; matuto, vivia contando estrelas, ouvindo carrilhões e sonhava muito. 

Quando os libaneses se reuniam em nossa casa, se entendiam naquela língua de quem gosta de montar em camelo. Eu achava aquilo meio estranho. Era como clamar no deserto.

Logo depois eu aprendi a fumar, matar as aulas de um Colégio Salesiano, e fui apresentado a um anjo de grande topete negro, envergado sobre uma guitarra, cuja canção dizia para mim: Vai João, ser torto na vida. 
Passei pela terra de Aleijadinho e o meu coração que até então era vadio, ficou barroco. Subi e desci ladeiras. Descobri que na vida existem mais hipóteses que teoremas. Supor é melhor que demonstrar e na dúvida mora a vontade de continuar.

Foi assim que deixei a memória, o patrimônio de séculos construídos pelas mãos do homem, o calçamento em forma de pé-de-moleque, o silêncio das almas, o barulho interno de minha alma. Calcei os sapatos, peguei o trem e vim pra cá, onde as ruas são largas, retas e simétricas; as sirenes são cortantes e os pastores das almas são barulhentos. O vizinho não mora ao lado, as árvores são introvertidas e os pios das aves são intrigantes. 

Quando nasci da segunda vez, o meu coração bateu aflito. Mas logo que vi o mar, serenei pois tudo que havia existido voltou subitamente e volta sempre quando estou caminhando no calçadão que vai do Leblon ao Arpoador. Aí, o que foi e o que poderia vir a a ser andam comigo, incluindo as sementes, o pão de queijo e a goiabada cascão. 

Os meus filhos Francisco e Júlia nasceram aqui mesmo cujo padroeiro (São Sebastião) é o mesmo da minha cidade natal. Ângela, minha companheira inseparável em todas essas andanças e mãe dos nossos filhos, foi criada em Ponte Nova mas também é natural da Cidade Maravilhosa. Bem que eu devia ter desconfiado que aquelas Congadas e Folias me trariam até Clementina de Jesus. O meu coração ficou ativo e cantou: “Atividade no Abano / Antes que o fogo se apague”.

Eu sou do signo de Câncer, por isso prefiro uma toca, entretanto aprendi a contrariar o meu signo várias vezes, por isso gosto tanto de viajar por esse mundo afora, só não consigo contrariar o meu signo de mineiro. 

Eu sei que esse deveria ser um retrato pintado ou desenhado, falado ou escrito do autor pelo próprio autor, mas quando se trata de revelar-me, prefiro assim, meio de lado (do jeito que a gente anda no samba), no lugar de frente ou verso. O silêncio, a liberdade e a terceira margem do rio foram inventados em Minas Gerais. 

O amor é o meu dia de folga. Meu melhor trabalho é a minha família, minha alegria é Rubro-Negra. Quem sabe de mim é o meu violão. Nesse fim de semana, se eu não for pra Belô, a gente se cruza do calçadão.

João Bosco por Sérgio Ricardo

Ouvi João Bosco pela primeira vez em minha casa, quando estava escolhendo o artista novo, desconhecido, que viria gravar o outro lado do compacto simples do Disco de Bolso. Achava que seria meio impossível encontrar alguém que tivesse fôlego para encarar o artista consagrado do outro lado do disco, Tom Jobim, com Águas de Março, temendo que viesse a jogar o desconhecido numa “gelada”. Foi um susto. Qualquer uma das músicas que ele apresentou naquele dia, poderia entrar no disco. Depois de muita conversa e controversia, resolvemos ficar com Agnus Sei, considerando sua parceria com outro craque, Aldir Blanc. Depois do disco pronto, Tom Jobim pediu para ouvir o outro lado. Depois de uma grande pausa, olhou pra mim e disse: Ô Sergio, você está querendo me derrubar! Cobriu o João de elogios. Rimos muito, ainda sem saber que aquele seria um disco histórico, pois lançava Aguas de Março, considerada posteriormente como a música do século e a descoberta de “um tal de João Bosco”.

Não vou me ater à nossa convivência cercada de ótimos momentos, pois seria assunto para um livro. Quero fazer uma análise, isenta, do artista. E digo simplesmente, que se trata de um fenômeno. Sua melodia, seu ritmo, sua harmonia, seu censo de arranjo, ultrapassam os níveis aceitáveis pelos mestres. Seu violão é eletrizante, e suas levadas antológicas por descreverem o ritmo brasileiro “nunca dantes navegados”, comprovando a diversidade de nossa rítmica de maneira rica e surpreendente. Sua voz alinhava todo esse universo sonoro com modesta intervenção, dando chance para que os versos ecoem com a mensagem pretendida. Na forma final, ao juntar todos estes valores num palco, é a explosão de um verdadeiro gênio musical da raça. É o Brasil se mostrando forte, ancorado em suas verdadeiras origens, ostensiva e orgulhosamente assumido. Ao ouvi-lo, da gosto de ser brasileiro.”

SERGIO RICARDO

The first time I heard João Bosco, I was at home selecting a new unknown artist, who would record the other side of the single for the Disco de Bolso project. I thought almost impossible finding someone who had the guts to face the renowned artist on the other side of the record – Tom Jobim singing Águas de Março – and fearful of putting the unknown artist in a no-win situation. It was scary. Any song he presented that day could be part of the record. After a long conversation and controversy, we’ve decided to stick with Agnus Sei, considering his partnership with another ace, Aldir Blanc. When the single was already recorded, Tom Jobim asked to listen to the other side. There was a long pause, then he stared at me and said: ‘Come on Sergio, are you trying to pull me down?!’ He praised João. We burst out laughing, not yet aware that this single would be a historical record, due to the launching of Aguas de Março, later on regarded as the song of the Century, and the discovery of “a certain João Bosco”.

I will not mention our friendship, surrounded by wonderful moments, since that could perhaps serve as a subject for an entire book. I wish to provide a fair analysis of the artist. And I simply say he is a phenomenon. His melodies, his rhythm, his harmony, his sense of arrangement surpass the levels accepted by masters. His guitar is thrilling, and his swing distinguished for describing Brazilian ‘never before explored’ rhythms, once again corroborating the diversity of our rhythms through a rich and striking work. His voice aligned such sonorous universe with humble intervention, giving lyrics a chance to reflect the intended message. Fundamentally, when putting all these values on a stage, the explosion of a truly musical genius could be seen. It’s a strong Brazil emerging, showing its deep-rooted origins, proudly and openly assuming its role. Listening to him make us proud of being Brazilians.

Quarenta Anos Depois

Desde a sua estreia, sob a benção jobiniana, num disco compacto que tinha “Agnus sei” de um lado e “Águas de março” de outro, João Bosco está completando 40 anos de carreira. Como no poema de Drummond, pode-­‐se dizer que ele atinge a marca na seguinte situação: “Quarenta anos e nenhum problema/ resolvido”. Mas muitos problemas colocados, com originalidade e mestria. São esses problemas musicais que ele reúne e aprofunda neses cd e dvd que lança em comemoração à efeméride.

Para começar por um de seus traços fundamentais, João Bosco é a um tempo homem-­‐música e homem-­‐canção. Essa tensão entre a canção (relação irredutível entre melodia e letra) e a música (tudo o que excede essa relação) atravessa a sua obra, se manifestando com muita força após a interrupção da parceria com Aldir Blanc. Em seu último disco, Não vou pro céu, mas já não vivo no chão, João Bosco realizara um rigoroso trabalho de reduzir essa tensão à canção pura: sem ornamentos, com canto despojado, só o osso.

Agora, como a ocasião é de revisar toda a obra, apreendendo os seus sentidos principais, as duas lógicas coabitam o espaço. Ouçamos faixas como “Tarde”, “Trem bala”, “Tanajura”, “Lilia”, “Bodas de prata”; aí a canção é invadida e alargada por dentro, por meio da exuberância musical de músicos da categoria de um Toninho Horta, de um Cristóvão Bastos, de um Ricardo Silveira. A música integra a canção, mas a excede. Hoje, quando se fala na “canção expandida” de bandas como Los Hermanos e Radiohead, é preciso lembrar que a tensão entre música e canção existe na música popular brasileira há muito tempo: de formas diferentes, praticam-­‐na nomes como Johnny Alf, Tom Jobim, Guinga, Milton Nascimento e João Bosco.

Ouçamos, por outro lado, faixas como “Pra que mentir”, “Tudo se transformou”, “Eu não sei seu nome inteiro”. Nessas é o homem-­‐canção quem assume o proscênio, o João Bosco autor e intérprete de inúmeros sucessos redondos, exatos, sem tirar nem pôr.
Como os nossos tempos de mashups e cut and paste têm enfatizado, nenhuma criação se faz a sós, por si só. Assim, os 40 anos de carreira de João Bosco são os 40 anos de diálogo de sua obra com mestres da tradição e, principalmente, da sua geração. O presente trabalho é também uma leitura pessoal dessa moderna época de ouro da música brasileira que são os anos 50/60/70. Estão presentes a densidade divina de Milton Nascimento (em “Lilia” e “Tarde”), o samba meditativo de Paulinho da Viola (“Tudo se transformou”), a bossa eterna do maestro soberano Tom Jobim (“Ligia” e “Fotografia”), o balanço caribenho incomparável de João Donato (“Eu não sei seu nome inteiro” e “Drume negrita”), o Chico Buarque herdeiro direto dos sambas simples dos anos 30 (“Bom tempo”). Daí a abertura inusual dos trabalhos, com a voz de Milton Nascimento em “Agnus sei”. “Agnus sei” é o começo de tudo, mas Milton é o que está no começo do começo, é o que torna o começo possível.

Numa confluência complexa de vários tempos, a cervical da história do samba também é evocada, numa bela leitura de “Pra que mentir”, de Noel e Vadico. E o futuro se projeta -­‐ evoé jovens artistas -­‐ no dueto com a voz límpida de Robeta Sá em “De frente pro crime”. Grandes artistas formulam grandes problemas: em João Bosco, o outro se torna o mais próprio, o passado se revela o futuro: clássicos como “Fotografia” e “Drume negrita” recebem interpretações altamente criativas, e seu

próprio passado musical emerge outro e novo de suas mãos, como mostram os arranjos de “Plataforma”, na companhia luxuosa das cordas do Trio Madeira, e “Bodas de prata”, percorrida pelo pensamento musical de Toninho Horta. Dessa capacidade de reformulação radical, João Bosco já havia dado provas no disco Dá licença, meu senhor, de 1996.

Da perspectiva da geografia -­‐ ou dos gêneros, se preferirmos -­‐, os 40 anos da obra de João Bosco também se acham aqui muito bem representados. O mineiro mais carioca da música popular é talvez o único que pode cantar, que pode ser ao mesmo tempo a densidade barroca das Gerais e a superfície escorregadia do Estácio. Uma e outra marcam forte presença nesse trabalho. A alma barroca inaugura o disco, com “Agnus sei”. O samba carioca o perpassa, com “O mestre sala dos mares” (cantado em duo com Chico Buarque, que retribui a visita de João Bosco a seu último disco), “De frente pro crime” (com Roberta Sá, como já disse), entre outras. O bolero latino-­‐ americano, que fez os ouvidos da geração formada nos anos 40/50, também comparece no clássico bolero-­‐acalanto de Bola de Nieve, “Drume negrita”. A negritude de boca cheia está em “Da África a Sapucaí”, grande e pouco conhecido samba da dupla Bosco/Blanc. E os trabalhos se despedem com “Bom tempo”, no duo de João Bosco e Chico Buarque que nos faz lembrar que a canção popular tem um compromisso com a alegria, com a leveza, com a esperança. Como nada em João Bosco é ingênuo, o arranjo é também uma evocação de João Gilberto, com seu crescendo sutil de percussões; e sente-­‐se ainda as presenças gigantescas de Caymmi, na simplicidade de tudo, e de Ary Barroso, no piano de Cristóvão Bastos. Por trás de uma geração, a outra. Aquela explicitada, essa citada.

Em suma, 40 anos e nenhum problema resolvido. Mas muitos brilhantemente formulados.

Francisco Bosco

Não vou pro céu mas já não vivo no chão

Depois de mais de 40 anos de carreira e centenas de músicas compostas com Aldir Blanc, finalmente uma das maiores duplas da história da música brasileira gerou a canção que retrata João Bosco à perfeição, “Sonho de caramujo”. “Cumpri o astral de caramujo musical/Hoje eu gripo ou canto/Não vou pro céu, mas já não vivo no chão/Eu moro dentro da casca do meu violão”, diz a letra de Aldir sobre o típico samba de João de onde foi tirado o título do CD, “Não vou pro céu, mas já não vivo no chão”, que agora vira show e turnê que, como diz de novo a letra, vai percorrer mundo, de Quixeramobim e Bombaim, com João Bosco a bordo do seu violão.

Mesmo sem ser explicitamente autobiográfico, o novo trabalho de João Bosco é uma espécie de síntese de sua vida e carreira, além de conciliar seu glorioso passado musical com um futuro não menos promissor. Do passado, João retoma sua (mais que histórica) mítica parceria com Aldir Blanc. Para o futuro, João confirma a excelência de seu mais recente parceiro constante, o próprio filho Francisco Bosco, ensaísta, poeta e letrista tão de mão cheia que impossibilita qualquer possível acusação de nepotismo. O próprio mestre Aldir Blanc declarou à imprensa recentemente que o jovem Francisco está mais maduro como letrista do que ele próprio, Aldir, quando tinha a idade dele.

Através de suas melodias, de sua voz e de seu violão cada vez mais perfeito e tão característico que não precisa ser anunciado para se saber que é dele, João Bosco conta sua história auxiliado pelas palavras precisas dos parceiros. Com Aldir, parceiro desde 1971 quando fizeram o samba carioca “Bala com bala” e a canção barroco-mineira “Agnus sei” e foram consagrados na voz de Elis Regina, João celebra a arte da parceria (e outras formas de amor) em “Plural singular”: “Você é e sempre foi/Meu par/E sem par/O não-ser virando ser/Nascer/Transcender (…)/Um amor tão singular é plural/Grão de jóia sideral”.

Já em “Mentiras de verdade”, além de homenagear uma de suas principais influências musicais que é o gênero samba-canção, João e Aldir narram em música a longa separação da parceria que viveram entre o início dos anos 1980 e o início de século XXI, dão sua versão da tão folclorizada briga e celebram o reatamento da parceria: “Verdade, foi tudo verdade/Eu hoje admito:/Somos um mito, sim/Maldade e carinho/Ternura sem fim/Num laço/Coleira de cetim/Quero esquecer de mim/Ser mais você, menos do que eu/Verdade e mentira que o amor entre nós reviveu”.

A irreverência carioca de Aldir, tão constante na dupla encontra a contrição mineira de João no samba “Navalha” e suas contundentes metáforas religiosas: “Teu sorriso é uma navalha/Que abre meu coração/O sangue pelo peito/É do Cristo na Paixão”. Tão conhecedor do caminho criativo do pai quanto Aldir, Francisco Bosco também busca traduzir João Bosco nas contradições da “Alma barroca”: “Eu tenho o pé no chão/E o coração no ar/A minha alma é barroca/Serei bom e fiel/Seu admirador/Serei o mais cruel/Por nada, sem querer/A culpa é de ninguém/A dor é de nós dois/E nosso grande amor também”.

Sim, João Bosco é barroco e em “Não vou pro céu, mas já não vivo no chão” ele canta essa alma barroca que cala tão fundo em cada brasileiro. Mas aproveita também por viajar por várias de suas influências musicais e literárias. Com parceiro novo, o paulista Carlos Rennó explora sua veia lírica na sofisticada e esperançosa “Pronta pra próxima” e na amorosíssima “Pintura”, canções leves, quase jobinianas como tantas que João já compôs. Já com outro parceiro novo, o carioca Nei Lopes, João explora outra faceta tão importante de sua obra (em discos como “Gagabirô” ou “Cabeça de nego”), a influência da música negra universal, em “Jimbo no jazz”, uma homenagem a Ray Charles que vai se transformando numa floresta de ritmos que têm em comum o fato de terem vindo da África: “E o jazz e o samba e a milonga e o tango e o candombe/E a rumba e o mambo, tudo é lá do Congo”.

Igualmente confortável nas grandes canções de amor (lembrem um “Papel machê” um “O amor quando acontece”, etc.) ou nos improvisos afro, João Bosco destila influências caribenhas em “Tanajura”. Mas volta sempre às modinhas cariocas como em “Desnortes”, uma bela homenagem também na letra de Francisco Bosco ao Rio de Janeiro, cidade que o mineiro de Ponte Nova escolheu para morar depois que foi apadrinhado musicalmente pelo grande poeta da cidade, Vinicius de Moraes, ainda no final dos anos 1960.

Se Vinicius foi padrinho, Clementina de Jesus foi madrinha, gravando músicas suas como “Incompatibilidade de gênios” e apresentando-se com ele ainda no início da carreira. E Clementina está presente na recriação que João faz do belo samba “Ingenuidade” (de Serafim Adriano), que ambos cantaram juntos quando abriram, num concerto antológico no Rio de Janeiro em 1976, a série de shows Seis e Meia.

Assim, meio que como sem querer, fazendo parecer um trabalho normal, um conjunto de novas canões, João Bosco repassa toda sua trajetória musical. Ver João Bosco desfiando seu amplo leque musical em “Não vou pro céu, mas já não vivo no chão” é, como o título indica, voar pela própria história singular da música brasileira.

Hugo Sukman

Não vou pro céu mas já não vivo no chão

Building on a forty year career, along with hundreds of songs composed with Aldir Blanc, one of the greatest duos in Brazilian music has finally generated a song that perfectly portrays João Bosco, “Sonho de Caramujo” (Snail’s Dream). “ I’ve met the fate of a musical snail/Today I grip or sing/Not heading for heaven but no longer living on the ground/ I live inside the shell of my guitar”. Aldir’s lyrics brings to light Bosco’s typical samba, as he has appropriately named the album, ” Não vou pro céu, mas já não vivo no chão“, which is now a concert tour and will travel around the world from Quixeramobim to Bombaim, featuring João Bosco, himself, on board with his guitar.

Although not clearly autobiographical, Bosco’s new work can be considered a synthesis of his life and his career, reconciling his glorious musical past with a promising future. From previous years and past accomplishments, João rescues his (more than historical) mythical partnership with Aldir Blanc. As for his future musical alliances, João highlights the great talent of his latest regular partner, his own son, Francisco Bosco, a truly outstanding essayist, poet, and song writer that is beyond any accusation of nepotism. Master Aldir Blanc has already revealed through the press that Francisco is more of a mature songwriter as he was himself at that age.

Through his melodies, his voice, and his ever increasing sophisticated guitar playing, so unique and identifiable that his name not even needs to be mentioned, João Bosco shares his stories supported by his partner’s precise lyrics. Together with Aldir, his partner since 1971, the year they composed the carioca samba, “Bala com Bala”, and the barroco- mineiro song, “Agnus Sei” (both made famous by Elis Regina), João celebrates the art and nuance of partnership (and other forms of love) in the song “Plural Singular” …”You are and have always been/My Pair/And no pair/Non-being becoming being/To be born/Transcended (…)/A love so singular is plural/ Grain of sidereal jewelry”.

On the track, “Mentiras de Verdade”, besides paying homage to one of his major forms of musical influences, the samba-canção, João and Aldir compose a musical narration about the long separation that their partnership experienced between the 1980’s and the early years of this 21st century, telling their version of the much publicized disagreement, as well as, celebrating their reconciliation. “True, it’s true/ Today I admit/ Yes, we are a myth/ Cruelty and tenderness/ endless tenderness/ Tied with a bow/ Satin leash/ Chose to forget about myself/ To be more yourself, less than me/ Truth and lies that love between us has revived”.

Aldir, with his typical irreverence from Rio de Janeiro (so common in their work), matches Bosco’s typical Minas Gerais’ constriction in the samba “Navalha” with its forceful religious metaphors “Your smile is a blade/ That opens my heart/ Blood on the chest/ Blood of Christ’s passion”. Francisco Bosco acknowledges his father’s creative process as much as Aldir, and also tries to translate João Bosco in the contradictions of “Alma Barroca”: “My feet are on the ground/ My heart is in the air/ My soul is baroque/ I’ll be good and loyal/ Your admirer/ The most cruel/ No reason, incidentally/ No one to blame/ Pain belongs to the both of us/ And so does our love”.

Yes, João Bosco is baroque, and in the recording of ” Não vou pro céu, mas já não vivo no chão “, he sings of his baroque soul that touches the hearts of all Brazilians! But he also uses the emotion to travel through many of his musical and literary influences. With a new partner, Carlos Rennó (from São Paulo), he explores his lyrical vein in the sophisticated and faithful, “Pronta pra Próxima” as well as in the passionate “Pintura”; light songs, almost Jobinianos, as many of Bosco’s compositions tend to be. With still another new partner, the carioca Nei Lopes, João explores and displays another aspect of his work (present in albums such as ” Gagabirô ” or ” Cabeça de nego”), which is the presence of a universal black music, in “Jimbo no Jazz”, a tribute to Ray Charles, which grows into a forest of rhythms that have their African roots in common: “And the jazz the samba and the milonga and the tango and candombe/ And the rumba and the mambo, they all come from Congo”.

Equally comfortable in great love songs (think of Papel machê” or “O amor quando acontece”, among others), and in Afro improvisations, João Bosco distills Caribbean influences in “Tanajura”. Although he always returns to Rio de Janeiro’s ditties, like “Desnortes”, a beautiful homage (also written by Francisco Bosco) to Rio de Janeiro, the city that this mineiro decided to live in after being ‘musically’ adopted by the city’s greatest poet, Vinicius de Moraes, in the end of the 1960’s.

If Vinicius was the sponsor of Bosco, then Clementina de Jesus was the godmother, recording his songs, such as “Incompatibildade de gênios “, while encouraging him at the very beginning of his career. Clementina’s influence is present in the recreation that João recorded of the gorgeous samba “Ingenuidade” (by Serafim Adriano), which they sang together when they opened in the 1976 anthological concert, in Rio de Janeiro, the concerts series named Seis e Meia.

Just like this, appearing quite unintentional, just a regular produced album with another set of new songs, João Bosco reviews his entire musical path! Watching and listening to João Bosco demonstrate his broad musical horizons in the album, ” Não vou pro céu, mas já não vivo no chão” is, as the title suggests, like flying into the unique history of Brazilian music.

Release 2006

Neste ano de 2006, João Bosco completa 60 anos. São mais de trinta anos de uma carreira, como é notório, desde o início orientada por um imperativo estritamente artístico, passando ao largo de oportunismos, modismos e afins. A ética musical de João Bosco sempre teve uma única lei, parágrafo único: a invenção. Seu compromisso com a canção popular é marcado pela firmeza de uma obra que atravessa as décadas preocupando-se fundamentalmente com o próprio fazer da canção: melodia, ritmo, harmonia, letra, canto – a grande tradição da canção popular brasileira.

A importância histórica da data convidou a que se a comemorasse em duplo estilo: primeiramente, gravando um DVD – o primeiro de João Bosco – com um repertório feito de seus memoráveis clássicos (dos sambas da década de 70, da incontornável parceria com Aldir Blanc, aos sucessos românticos dos anos 80/90, como “Memória da Pele”, “Desenho de Giz”, “Papel Maché”, etc.), todos em arranjos depurados através dos muitos anos de intimidade com as canções. O público de João Bosco sabe que sua mineirice é restrita ao âmbito particular, pois João é, definitivamente, um artista de palco, um artista cuja obra cresce no palco. Assim, João devia esse DVD àqueles que o têm acompanhado ao longo de sua carreira, bem como a seu público por vir, para que aqueles e estes tenham registrada a excelência de sua performance. Com participações especiais de Djavan e Yamandu Costa, o DVD (uma co-produção do selo MP,B, da gravadora Universal e do Canal Brasil) será gravado nos dias 15 e 16 de fevereiro, no novo teatro do Ibirapuera, em São Paulo.

Mas, como não poderia deixar de ser, em se tratando do inquieto João Bosco, o ano de 2006 será de comemorações, não apenas retrospectivas, mas também prospectivas: no segundo semestre o artista lançará seu novo disco com repertório de canções inéditas. Nele, João retoma a parceria com Aldir Blanc, e inclui canções de outros parceiros, como Francisco Bosco, Nei Lopes e Carlos Rennó. Na esteira do sucesso de crítica de seu último disco, “Malabaristas do Sinal Vermelho” (indicado ao Grammy Latino, ao prêmio Tim de música brasileira, e eleito pelo jornal O Globo um dos melhores shows do ano), o novo disco de João Bosco desde já promete. O compositor deve entrar em estúdio nos meses de maio/junho, com lançamento previsto para outubro, coroando, assim, um ano histórico desse artista que é, inegavelmente, um patrimônio da canção popular brasileira.

Malabaristas do Sinal Vermelho

Dentre as milhares de imagens que povoam o cotidiano da cidade do Rio de Janeiro nesse começo de século, uma se destaca: as crianças de rua fazendo malabarismos com bolinhas de tênis diante dos carros parados sob o sinal vermelho. Destaca-se porque reúne e sintetiza, em uma única cena, concreta e brutal, os aspectos mais característicos do conflito social sem tréguas que tem lugar na cidade. Esses aspectos se condensam todos no momento em que a criança, ao pedir um trocado ao motorista, após fazer sua exibição, dá de cara com um vidro fechado. No vidro, toda a complexidade da cidade: o vidro separa, declara o muro social, mas esse muro é transparente e contraditório, pois através dele a criança tem acesso a sua imagem, reconhece sua marginalidade num espelho que é na verdade o olhar do outro, e que lhe sentencia justamente sua impossibilidade de ser vista.

O vidro é a metáfora da cidade: partida, sim, mas por fronteiras extremamente precárias, transparentes, vulneráveis. O vidro é limite e espelho, lugar onde as identidades se separam e esclarecem reciprocamente. O vidro é também limiar: revela a invisibilidade dos excluídos para eles mesmos, ao mesmo tempo que revela a excessiva e vulnerável visibilidade de quem está do outro lado. Tudo isso numa única imagem. Mas essa imagem, experimentada ao rés do real, pode ser vivenciada sem a dimensão de seu sentido. É preciso dar distância a essa imagem, destacá-la do real e então tentar tornar visível o sentido que a sustenta: pois muitas vezes a representação é necessária para que se possa experimentar o real em toda sua intensidade de sentido, sentido que escapa quando, por estarmos excessivamente próximos, não temos a distância necessária para enxergar. Pois dar sentido, em forma de canções, a essa e outras experiências – seja do cotidiano da cidade (como na faixa-título, ou em “Cinema Cidade” e “Distâncias”), seja dos relacionamentos amorosos (“Eu Não Sei Seu Nome Inteiro”, “Não me Arrependo de Nada”) ou de nossa condição histórica e existencial (“Moral da História”, “Pernas de Pau”)
– da vida nesse começo de século é a tarefa a que se dedicou esse disco de João Bosco,
Malabaristas do Sinal Vermelho.

Nele, reconheceremos a manutenção ativa de certos traços da rubrica pessoal de João Bosco: o samba azeitado (“Terreiro de Jesus”, “De Mamadeira”), a cabeça de nego

(sua versão para “Andar com Fé”), o gosto pela ironia e o humor (“Benzetacil”, “Jogos de Arrasar”), as belas melodias das canções de amor (“Eu Não Sei Seu Nome Inteiro”, “Não me Arrependo de Nada”). Pois de um disco novo de um João Gilberto, por exemplo, não se deseja qualquer “novidade”, apenas que a sua forma esteja em forma. Mas além desses traços, nos quais se reconhece a diferença de sua assinatura, outros traços se voltam contra essa própria assinatura, diferindo dela mesma. É que João Bosco, que acaba de completar trinta anos de carreira, percebeu que a maneira de tornar essa data realmente comemorativa era entregar-se a um projeto autoral, quando geralmente uma data redonda e significativa como esta serve de pretexto a lançamentos do tipo “revisão- de-carreira-sob-forma-de-antologia”.

E autoral no sentido mais rigoroso do termo: insistindo na construção de uma diferença, tanto em relação à produção cultural de seu tempo, quanto em relação a sua própria marca. Isso se manifesta em canções como “Moral da História”, carregada da estranheza e dramaticidade de um pequeno épico pós-moderno; na utilização de recursos da música eletrônica para fins expressivos em “Cinema Cidade”, que tem a participação de Seu Jorge; ou ainda na atualização da temática social (tão característica de seu trabalho nos anos setenta), da faixa-título, que conta com a participação do coral da Escola de Música da Rocinha; no diálogo entre Villa-Lobos e o maracatu, em “Pernas de Pau”; finalmente em “Distâncias”, uma reflexão musical sobre os percursos da identidade brasileira.

Francisco Bosco

Os Bosco na esquina musical da brasilidade

Esquina, bem se sabe, é ponto de encontro. Nela se contam histórias e se esboçam projetos. Para ela convergem memórias e expectativas. Portanto, na esquina, passado e presente se fundem em parceria com o aceno que vem do futuro. Talvez, por essa imagem, melhor se compreenda a proposta formulada no novo trabalho que, a exemplo de Mil e uma aldeias, reedita (e consolida) a parceria entre João Bosco e Francisco Bosco. Doze faixas (nove autorais e três releituras) dão formato final a Na esquina. Numerologia à parte, lembramos que 12 e 9 são, respectivamente, números que evocam a totalidade de ciclos temporais: o tempo de doze meses da Terra; a duração de nove meses para a gestação de um ser. O conceito, pois, que parece estar na origem do recente CD não esconde o propósito de trazer em si o olhar de uma vida que passa em revista a história de um tempo musical no qual referências se mostram reverências de gratidão de alguém que, ao chegar à vida, encontrou um legado tanto nas raízes brasileiras quanto naquelas que as circundam.

As três composições estrangeiras Fools Rush In (Passos de Amador), Siboney e True Love (Amar, Amar) não têm seu relevo maior pela originalidade (embora ela se faça presente) que lhes tenha destinado a interpretação. Não, elas valem mais como citações que costuram a história do tempo musical, seja no mundo, seja no Brasil. Assim, nomes como Johnny Mercer, Lecuona e Cole Porter recebem de João Bosco a saudação pela importância de suas contribuições aos destinos da música popular. Nessas três referências também estão contempladas as Américas às quais, como brasileiros, pertencemos. A partir daí, uma história em dois planos é contada: 1) a história da música; 2) a história de uma vida entregue à música. O ponto de encontro para esses enredos é a esquina que efetivamente inaugura a pesquisa autoral na segunda faixa, cujas palavras iniciais revelam que “eu fiquei (…)/ eu fiquei lá (…)/ e ainda tô/…/”. Um ser se sentiu encantado na esquina da música e dos ritmos, com os quais nascia a identidade de João Bosco. Nessa rememoração vem um canto que não esconde a homenagem à raiz popular de Clementina de Jesus.

O enredo do CD vai deslizando para a construção de um mosaico, abrindo espaços para múltiplas inclusões. Uma delas é dirigida à palavra (Mama Palavra), cujas iniciais M e P também remetem à Música Popular. Se Clementina pode ser ouvida na faixa anterior, o mesmo se estende em Mama Palavra, numa quase explícita homenagem, a referências vocálicas de Gilberto Gil (de quem, a propósito, João se declarou seu “irmão mais novo”. Nessa composição, para a qual também concorre a competência do arranjador Jacques Morelembaun, fundem-se variações de momentos orquestrais com o reggae, sob o suporte expressivo de uma letra a atestar a maturidade poética de Francisco Bosco. O samba, com o mais contagiante e genuíno têmpero rítmico, comparece em Doce Sereia. A ele, João Bosco dedica a confissão de um encanto especial.

Prosseguindo na história de uma vida musical, os anos oitenta são lembrados na atmosfera meio bolerizada de Castigado Coração e Flor de Ingazeira, entremeados pela voz emprestada à malandragem da periferia no samba-rap Ditodos.

Quando se imagina que o painel do mosaico rítmico-musical estava contemplado, eis que irrompe a criação — talvez a mais vigorosa do CD — Beirando a Rumba. O que seria nada além de uma porta aberta para o Caribe, na verdade se revela uma requintadíssima composição de perfil autenticamente antropofágico. Trata-se de algo que, no âmbito da música popular mundial, apenas o Brasil, pela sua mistura cultural, sabe realizar.

Beirando a Rumba resulta de perfeita harmonia entre a construção musical e a sonoridade das palavras, reportando-nos a um tempo-espaço mítico no qual se inscreve o nascimento da brasilidade, a partir do recorte de um olhar que não o teve (nem o poderia ter) Pero Vaz de Caminha, na carta de fundação: “Grande cambará-preto / sabor de sarrabulho soou / no gogó /…/”. Como alerta o verso: “Na boca a pororoca explodiu”. Da revolução resultante do encontro das águas (ou, no caso, das culturas), nasce a beleza plural de um povo cujo perfil está condensado no refrão (“Ê ê ê ê ê / Aiaô aiaô aiaô aiaô /…/”). Há no refrão um dos mais ricos jogos de referências. O ritmo e a sonoridade vocal entoam, simultaneamente, um canto tribal, indígena que se soma ao mote inicial da famosa composição Karavan, inserida por João Bosco na trilha sonora Benguelê, composta para o Grupo Corpo (1999). Sem dúvida, a força desse refrão se intensifica quando se reconhecem nele as referências que o geram. Acresça-se a esse aspecto o condimento experimental por conta do arranjo, bem como do texto falado, ambos a insinuarem tanto a história vivida pelo Brasil quanto a inventividade capaz de tornar o país sempre uma promessa de redenção.

A nona faixa Siboney entra no enredo para pontuar outro cruzamento entre a latinidade e a influência da cultura árabe da qual os Bosco são herdeiros. Nesse enredo que conta a história de uma vida não poderiam faltar evocações épico- líricas de cenas de outrora, típicas de uma ambiência interiorana, tão familiares à infância de João. Essa é a moldura para o quadro musical de Cego Julião.

Todavia, temos de lembrar que a esquina é também ponto convergente do agora. Em seu nome, sob os auspícios da parceria com a palavra do jovem poeta, afirma- se o presente com o vigor de um otimismo que ajuda a continuar: Dia de Festa.

Apesar de todas as dificuldades que atravessam o país desde sempre, algo mantém seu povo em movimento: “Sol, porta-voz da manhã /…/”. O signo da alegria é parte dessa história. Seja como for, o Brasil é banhado pela solaridade. Com ela, ele prossegue…

A última faixa de Na esquina é dedicada a Amar, amar, uma versão de True Love. Uma vez mais comparece o registro de João Bosco que, ao longo da carreira, jamais desprezou citações emanadas de sua memória musical.

Na sua vasta discografia, estão referências que vão do erudito ao popular.

Ora esse recurso se inclina para a beleza do tanto que a música brasileira contém (Villa-Lobos / Ary Barroso, entre outros), ora seu olhar se fixa em outras culturas (Debussy / Cole Porter). É a subjetividade de João Bosco que, na solidão criadora de repetidas noites, entra em contato profundo com seu violão e daí a memória extrai singelezas.

Releituras, portanto, não são, na sua obra, ditadas por demandas de mercado. São, simplesmente, imposições estéticas que tomam conta de um ser. É nessa perspectiva que Strawinski e Tom Jobim (como em recriações anteriores) entram num diálogo familiar. É só isso. Na emoção de João Bosco, há lugar para todos. Afinal, João Bosco é parte da alma brasílica, ou seja, o uno e o múltiplo se irmanam em favor do pleno. Amar, amar é apenas mais uma dessas muitas rememorações, agora compartilhadas com o suporte poético que vem dos versos de Francisco Bosco.

Amar, amar , com a primeira faixa Passos de amador, fecha, circularmente, Na esquina. Da primeira à última, está o amor de quem caminha pelo mundo da (com e pela) música. Em Amar, amar, o tom intensamente lírico, sob a tutela de um arranjo de impecável suavidade, serve a um ato de fé que João destina para saudar seu encontro com a música: “Juntos, nós dois / a sós no jardim do amor / Noite /calma no céu/ só agora entendi / a razão de ser / de estar aqui / Amar, amar/ por você sofrer / por você sorrir /…/”. Aí está, de modo singelo, um profundo agradecimento por tudo que da música veio. Com ela, os milhares de aplausos pelas centenas de palcos. Com ela, também as dores que forçaram separações, adiaram afetos, tudo por conta de tantas viagens pela vida. Encontros e desencontros, tudo reunido, tudo relembrado numa esquina na qual, agora, o ser se pergunta: “Para onde devo ir?”

Ivo Lucchesi

A vida no fio da navalha

O novo trabalho de João Bosco faz o recente debate sobre a morte da canção parecer algo desde já superado, como uma discussão que serviu de incremento à crítica musical no Brasil, mas que já não serve como paradigma para se pensar o futuro.

É o álbum de um grande cantor, com domínio total da técnica, emoção na medida certa, um timbre pleno de brilho, áspero e cortante em sua doçura, cuja suavidade é mais uma de suas experimentações. É o disco de um grande instrumetista, ele mesmo uma escola do violão brasileiro, como, cada um a seu modo, João Gilberto, Baden Powell e Gilberto Gil. É o disco de um grande compositor, dono de uma linguagem própria, na qual as invenções melódicas e harmônicas soam simultaneamente espontâneas e requintadíssimas. A soma dos três criou sua história própria no vasto quadro da canção brasileira, e ganha agora, com Não vou pro céu mas já não vivo no chão, um acréscimo entusiasmador.
Só uma das parecerias com Aldir Blanc, “Navalha”, vale todas as comemorações possíveis pelo esperado retorno da dupla. O tema amoroso deságua na imagem de um Cristo crucificado, remetendo aos sofrimentos físico e espiritual, aos dramas e dilacerações do desejo que marcaram sobretudo o imaginário barroco. E, assim, a “paixão” de Cristo fala também da paixão do homem, reunindo numa única palavra-cravo o humano e o divino, a dor e o prazer, a luz e a escuridão, a vida e a morte. Não é por acaso que uma das parcerias com Francisco Bosco fale em primeira pessoa de uma “Alma barroca”. Barroca e mineira, poder-se-ia acrescentar. E, mais que isso, seria preciso notar o quanto a estética barroca de João Bosco, nesse novo álbum, dá-se como o barroco das igrejas das Minas Gerais: menos ornamental, austero, sutil nos seus jogos de claro-escuro, mais clássico portanto. A tortuosidade das linhas, a tensão entre massas e volumes, os dramas de luz e sombra e o culto formal surgem, então, sob o controle de uma economia voltada para o mínimo. Daí, ainda na canção “Navalha”, a voz, o violão de João Bosco e o contracanto do violão de Ricardo Silveira, criarem um ambiente de tensões sob controle e uma atmosfera mística, plena de sugestões.
Esse barroco suavemente erótico, melancólico, saudoso e a um só tempo intenso e mortal como uma lâmina pode ser visto ainda em outras imagens, como a do “teto

de igreja” na suavíssima canção de abertura, “Perfeição”, ou na pulsão de morte – ou melhor, de elevação, pela via do apagamento no vazio – da pungente “Desnortes”, na qual surge, outra vez, o Cristo – na paisagem do Rio – “levitando/ contra o céu”, e a dualidade dilacerante em afirmações como “sou atraído pelo infinito” e “tudo é febril, tudo quer ser, tudo lateja”. A letra de “Alma barroca” afirma: “Eu tenho o pé no chão/ e o coração no ar”. A de “Plural singular” fala do “não-ser virando ser”. E o título do álbum, retirado de “Sonho de caramujo”, funciona quase como uma palavra de ordem, declaração de princípios estéticos e existenciais: “Não vou pro céu mas já não vivo no chão”. Mesmo a paisagem é retratada na clave do paradoxo: “o sol/ o mar acende, prateado, quase glacial”. É na contradição e nas atrações paradoxais que se movem cuidadosamente os elementos constitutivos desse álbum. Sua alma barroca está aí, e não na ornamentação.

Tudo isso é apenas um dos modos possíveis de aproximação da complexidade e da beleza de Não vou pro céu mas já não vivo no chão. Aproximação que exige extremos ouvidos e atenção, já que estamos diante da vibração, da dor, da emoção, da alegria, de uma série de afetos, enfim, mas também do absoluto virtuosismo, num conjunto em que tudo é matematicamente preciso, em que a respiração se confunde com a voz, a voz com a pele, o corpo com o instrumento, o significado com o som. E se parece contraditório o vigor emotivo caber no rigor, na economia do mínimo, a audição reconhece facilmente uma unidade excepcional, que tende à concisão. É o que soa inequívoco em cada faixa.
O canto não perde sequer uma fração das sílabas. As canções, assim, brilham intensamente como fala, ou ainda, as letras materializam-se arquitetonicamente e seus sentidos emergem em absoluto equilíbrio com a música. Tudo soa exato como uma navalha. Poderia ser esse o título do álbum: “Navalha”. Porque tudo nele é, como uma lâmina, cortante: as canções, as cordas, o canto, os arranjos. Como na célebre imagem de João Cabral de Melo Neto, temos “uma faca só lâmina”: não há aproximar-se dela sem se ferir, não existe uma área segura, um mínimo lugar fora da intensidade e da beleza.

Basta ouvir “Tanto faz”, parceria de João com o filho, Francisco Bosco. A elegância do canto, preciso, reto, soa como o depoimento de uma vida em que não cabe mais qualquer ilusão. Um desabafo, que soaria sentimental decerto, não fosse a sua extrema força cética, seu senso de liberdade: “Eu vou partir/ Saio do jeito que eu vim/ Sem pedir nada a ninguém/ Sem nada pedir”. Só que, mais uma vez, a

contradição traz seu brilho de adaga quando, ao final, o vocalize lancinante – queixume, gemido, quase um grito – parece desmentir as palavras que diziam apenas das certezas, da lucidez e da ética imperturbável. Explosão e contenção, portanto, confundem-se numa dinâmica musical que em tudo lembra os grandes clássicos do samba carioca. Mas “Tanto faz” é mais que alusão ou homenagem, pois não seria difícil dizer que ele próprio é, desde já, um clássico.
Há mesmo em muitos momentos do álbum uma espécie de veio histórico a sustentar as canções, e que, ao mesmo tempo, é sustentado por elas. Refiro-me, por exemplo, a uma história do samba – dos anos 30 a João Gilberto – que parece soar nas harmonias de “Navalha”.

Do mesmo modo, “Pronto pra próxima”, inspirada parceria com Carlos Rennó, afigura-se como uma homenagem sutil a Orlando Silva, Gershwin e Tom Jobim. E é assim que outra parceria com Rennó, “Pintura”, tem uma leveza e um ritmo que remetem a Caetano e João Donato.

“Desnortes” é uma espécie de canção praieira carioca, contemporânea, com algo de Chico Buarque e Antonio Cicero, que faz um tocante retorno às serestas, ao mesmo tempo em que cita Caymmi num dos mais belos momentos do álbum.
“Mentiras de verdade”, da dupla Bosco-Blanc, é, por sua vez, um samba-canção de corte tradicional que parece apontar para Tito Madi, com seus sambas de harmonização moderna que tanto influenciaram a bossa nova. Também a letra de Aldir Blanc tem a elegância densa e a desilusão melancólica de “Chove lá fora” ou “Cansei de ilusões”. Mas a atmosfera não estaria completa sem o baixo de Jorge Helder, a guitarra de Ricardo Silveira, a bateria de Jurim Moreira e o violão de João Bosco.

Citação mais explícita talvez, tem lugar em “Jimbo no jazz”, espetacular parceria com Ney Lopes. O homenageado, Ray Charles, é lembrado nos vocais que abrem a canção, mas também no violão rítmico e na harmonia jazzística. Se a referência parece surpreendente, faz-se necessário ouvir, entre outras, “Bate um balaio ou Rockson do Pandeiro”, de Gagabirô (1984) ou Cabeça de nego (1986). Este último, sem dúvida, um dos discos mais experimentais da música brasileira, no qual emerge uma África inventada pela colagem de funk, samba, jazz, blue, umbanda, choro e rock and roll, com especiais referências a Bill Haley e seu “Rock around the clock”. Aqui, em “Jimbo no jazz”, soam clássicos de Ray Charles como “I got a woman”, “Don’t set me free” ou “What’d I say”. A lição – a mesma das canções de

Cabeça de nego – é ainda mais clara que a homenagem: “o jazz o samba e a milonga e o tango e candombe/ E a rumba e o mambo, tudo é lá do Congo”. O tributo maior é prestado, nessa declaração de universalidade da música negra, traduzida, digamos assim, na própria letra percussiva dessa canção que é praticamente um trava-língua, cheia de humor e balanço: “então, o samango, mondrongo, mubungo, piongo/ largou da rezinga e caiu no fandango”. Na historieta narrada pela canção, o personagem síntese de tudo só poderia ser um músico, Jimbo, o trombonista a quem cabe mostrar com a própria música que o jongo é um jazz, ou ainda, que tudo é África.

A presença africana é mais marcante porém, na deliciosa “Tanajura”, pelo ritmo, mas também pela guitarrada afro, miúda e dançante dos violões de João e Ricardo Silveira em feliz aliança com a percussão sutil mas expressiva de Robertinho Silva e Armando Marçal.
A conversa jazzística prossegue com a balada “Plural singular”, intimista, coltraneana, quando, mais uma vez, o quarteto formado por Jurim Moreira, Jorge Helder, Ricardo Silveira e João Bosco alcançam uma sonoridade sofisticada e quente, destacando-se um belíssimo improviso jazzístico.

O belo samba de Serafim Adriano, “Ingenuidade”, não deixa de ser uma sutil homenagem a Clementina de Jesus, referência absoluta de João Bosco, já que a canção foi gravada por ela no disco Clementina de Jesus (1976), com participação de Carlos Cachaça, onde ela também canta “Incompatibilidade de gênios”, de Bosco e Blanc. Na gravação de Não vou pro céu… canto e violão, aqui, sublinham o lirismo, o colorido suave e a simplicidade sofisticada do samba de Serafim Adriano (uma leitura oposta, portanto, à de Caetano em Zie e Zii, tão cerebral quanto sinuosa e áspera).
O despojamento de “Ingenuidade” tem seu contraponto imediato em “Alma barroca”, trabalhada, densa, espinhosa, com canto e violão excitados e bem desenhados em curvas ascendentes.

Ao encerrar o álbum, “Sonho de caramujo”, parceria com Aldir Blanc, funciona como uma espécie de profissão de fé: um rito que sinaliza claramente uma orientação, que atesta um desejo e um compromisso. A brevidade da letra contraria o que se espera do formato samba-enredo, assim como a afirmação de uma intimidade, de quase um fechamento – “eu moro dentro da casca do meu violão” –, contradiz a tendência coletivista do gênero. A extroversão do canto, num registro altíssimo, parece levar ao paroxismo a interpretação dos cantores de escolas-de-samba, enquanto a escolha do acompanhamento – dois violões apenas – outra vez quebra a expectativa

da óbvia presença de uma percussão, aqui reduzida a poucas batidas na madeira do violão, gesto com o qual o instrumentista “caramujo” assevera o valor e a totalidade de sua casa-casca. Mas se a letra, invertendo os sinais do samba-enredo tradicional, narra uma história pessoal, em primeira pessoa, lá está, no entanto, a paisagem exótica, bem ao gosto dos carnavalescos: “E eu andando de elefante em Bombaim”. Paisagem inventada, fruto da imaginação, pode-se dizer, portanto, que este samba é uma exaltação do livro e da leitura, que dialoga em registro popular com um clássico de Castro Alves, “O livro e a América” (“Bendito o que semeia/ Livros… livros à mão cheia…/ E manda o povo pensar!/ O livro caindo n’alma/ É germe — que faz a palma,/ É chuva — que faz o mar (…)”. Livro e violão se equivalem, são moradas essenciais, intestinas, sim, mas que abastecem a fantasia e alargam horizontes de tempo e espaço.

Assim, na concha do violão de João Bosco parece ecoar a história do samba, da música brasileira, da música negra norte-americana, caribenha, as músicas anônimas das velhas Gerais e da Cidade do Salvador, mas também os Beatles e, por fim, toda a obra musical do próprio Bosco com seus parceiros, cabendo destacar, sem dúvida, este magnífico Aldir Blanc, e a certeza de um novo grande letrista: Francisco Bosco. Tudo se dobra e se confunde numa espiral – outra vez, o barroco – com voltas e giros onde sombra e luz dão corpo e alma a canções que reafirmam a vida e expulsam a morte para muito longe.

Eucanaã Ferraz

Life on the razor‘s edge

The new work by João Bosco makes the recent debate about the death of melody looks hopelessly outdated, as a discussion that served as increment to Brazilian music reviews, but which no longer serves as a pattern to think the future.

It‘s the album of a great singer, with total mastery of the technique, well-dosed emotion, a bright tone of voice, yet harsh and sharp in its docility whose softness is just one of its experiments. It‘s the album of a great musician, himself symbolizing a school of Brazilian guitar, similar to, in their own way, João Gilberto, Baden Powell and Gilberto Gil. It‘s the album of a great composer, who owns a unique language in which melodic and harmonic inventions sound simultaneously spontaneous and extremely elegant.
Summing up the three resulted in his own story within the large scope of Brazilian music which gains now, with Não vou pro céu mas já não vivo no chão (Not heading to heaven but no longer living on the ground), an stimulating increment.

One of the songwriting partnerships with Aldir Blanc, ―Navalha‖, is worth all possible celebration for the duo long-awaited comeback. Love theme flows into the image of a crucified Christ, referring to physical and spiritual suffering, to drama and desire laceration, which have distinctively characterized the baroque imaginary. Therefore, the
‗passion‘ of Christ also refers to the passion of men, enclosing within one word-nail human and divine, pain and pleasure, light and darkness, life and death.
It‘s not by chance that one of the partnerships with Francisco Bosco has a first person view of a ―Baroque Soul‖.

Baroque and from Minas Gerais, we might add. Moreover, it‘s essential to notice how much João Bosco‘s baroque aesthetic , in this new album, arises just like the baroque of the churches from Minas Gerais – less elaborate, severe, subtle in its bright-dark games, hence more classic. Tortuous lines, tension between masses and volumes, dramas of light and shadow and the formal cult emerge, then, under the control of an economics focused on the least.

And so, still on the track ―Navalha‖, the voice, the guitar of João Bosco and the countermelody of Ricardo Silveira‘s guitar, create an atmosphere of controlled tensions yet mystic, full of suggestions.

Such baroque slightly erotic, melancholic, nostalgic and, at the same time, intense and deadly as a blade could still be felt in other images, as ‗the church ceiling‘ in the very gentle opening track, ―Perfeição‖, or in the drive towards death – better yet, towards elevation, through fading in emptiness – of the moving ―Desnortes‖, in which the Christ once again, emerges – in Rio de Janeiro‘s landscape – ―levitating/against the sky‖, and the shattered duality in statements like ―I‘m attracted by infinite‖ and ―all is feverish, all wishes to be, all pulses‖. Lyrics of ―Alma barroca‖ states:
―My foot is on the ground/ my heart in the air‖. The track ―Plural singular‖ talks about
―not-being becoming being‖. And the album title, taken from ―Sonho de caramujo‖, works almost like a catch phrase, declaration of aesthetics and existential principles: “Não vou pro céu mas já não vivo no chão‖. Even landscape is portrayed in paradox key: ―the sun/ ocean lights up, silver, almost glacial‖. It‘s in contradiction and paradox

attractions that carefully move the constitutive elements of this album. Its baroque soul is found there and not in the adornment.

All of this is just one of the many possible ways to get closer to the complexity and beauty of Não vou pro céu mas já não vivo no chão. Closeness that demands extreme ears and attention, as we face vibration, pain, emotion, joy, in short, a series of affections, but also of the absolute virtuosity, in a set where everything is mathematically precise, in which breathing mingles with the voice, voice with the skin, body with the instrument, meaning with the sound. And if it sounds contradictory that emotional vigor is contained in rigor, in the economics of the least, the ears easily recognize an exceptional unity which tends to concision. That‘s what sounds absolute in every single track.

Singing does not miss a fraction of the syllables. Therefore, the songs intensively shine as a speech; beyond, the lyrics architectonically materialize themselves and their meaning emerge in absolute balance with the music.

Everything sounds as sharp as a razor. That could be easily the album‘s title:
―Navalha/Razor‖. Because everything within it is like a blade, sharp – the songs, the strings, the singing, the arrangements. Similar to the renowned image by João Cabral de Melo Neto, we‘ve got ―a knife all blade‖: no choice of getting near without getting hurt, no safe area, no tiniest spot outside intensity and beauty.

Just listen to ―Tanto faz‖, partnership with his son, Francisco Bosco. The elegance in the singing, precise, straight, sounds like a statement of a life in which no illusion could fit anymore. An outflow, that would definitely sound mellow, if it wasn‘t for its extreme skeptical force, its sense of freedom: ―I will leave/ Just as I‘ve come / Asking nothing / From nobody‖. But, once again, contradiction brings its shine of dagger when, at the end, sharply vocalizes it – whining, crying, almost a shout – almost denying the words that spoke only of certainty, reason and stolid aesthetic. Explosion and contention, therefore, mix into a musical dynamic where always reminds us of great classics of original sambas from Rio de Janeiro. But ―Tanto faz‖ is more than an allusion or tribute, we might even say that it‘s already a classic.

There are, in many moments of the album, a kind of historical vein supporting the songs, which is, at the same time, supported by them. I refer, for instance, to the history of samba – from the 30‘s to João Gilberto – which seems to emerge in the harmonies of
―Navalha‖.

Similarly, ―Pronto pra próxima‖, a gifted partnership with Carlos Rennó, appears as a subtle tribute to Orlando Silva, Gershwin and Tom Jobim. The same way, another partnership with Rennó, ―Pintura‖, presents the delicacy and rhythm that reminds Caetano and João Donato.

―Desnortes‖ is a typical beach song from Rio de Janeiro, modern, with hints of Chico Buarque and Antonio Cicero, making a touching return to the serenades, at same time mentioning Caymmi in one of the most beautiful moments of the album. ―Mentiras de verdade‖, by Bosco-Blanc, is in its turn, a samba-canção of traditional cut which seems to point at Tito Madi and his sambas of modern harmonization that deeply influenced bossa nova. Aldir Blanc‘s lyrics present the dense elegance and melancholic

disillusion of ―Chove lá fora‖ or ―Cansei de ilusões‖. But the setting wouldn‘t be complete without the bass of Jorge Helder, the guitar of Ricardo Silveira, the drums of Jurim Moreira and the guitar of João Bosco.

More explicit quotation, maybe, is ―Jimbo no jazz‖, outstanding partnership with Ney Lopes. The tribute to Ray Charles is recalled in the vocals that open the song, and also in the rhythmic guitar and the jazzy harmony. If the reference seems unexpected, it‘s mandatory to listen to, among others, ―Bate um balaio or Rockson do Pandeiro‖, by Gagabirô (1984) or Cabeça de nego (1986). The latter, no doubt, is one of the most experimental albums of Brazilian music in which emerges an invented Africa through a collage of funk, samba, jazz, blue, umbanda, choro and rock and roll, with special references to Bill Haley and his ―Rock around the clock‖. Here, in ―Jimbo no jazz‖, Ray Charles‘ classics resonate, such as ―I got a woman‖, ―Don‘t set me free‖ or ―What‘d I say‖. The lesson – the same lesson as Cabeça de nego‘s songs – is even more clear in the tribute: ―the jazz the samba and the milonga and the tango and candombe/ And the rumba and the mambo, they all come from Congo‖. The greatest tribute is paid, in this declaration of black music universality, translated, let‘s say, in the own percussive lyrics of this song which is basically a tongue twister, full of humor and swing: ―entao, o samango, mondrongo, mubungo, piongo/ largou da rezinga e caiu no fandango”. In the little tale narrated in the song, the character who synthesizes everything could only be a musician, Jimbo, the trumpet player who is in charge of showing with his own music that jongo is jazz, better yet, that everything is Africa.

Thou, the African presence is more remarkable in the delicious ―Tanajura‖, for its rhythm, but also for the afro guitar, short, dancing by João and Ricardo Silveira in a happy association with a subtle but expressive percussion by Robertinho Silva and Armando Marçal.

The jazzy conversation proceeds in the ballad ―Plural singular‖, intimate, coltraneish, when, once again, the quartet assembled by Jurim Moreira, Jorge Helder, Ricardo Silveira and João Bosco reach a sophisticated and warm sonority, with emphasis to a delightful jazzy jam.

The lovely samba by Serafim Adriano, ―Ingenuidade‖, could be seen as a subtle tribute to Clementina de Jesus, absolute reference to João Bosco, once the song was recorded by her in the album Clementina de Jesus (1976), featuring Carlos Cachaça and where she also sings ―Incompatibilidade de gênios‖, by Bosco and Blanc. In the recording of Não vou pro céu… singing and guitar, clearly, underline lyricism, smooth colors and sophisticated simplicity of Serafim Adriano‘s samba (an opposing reading from Caetano‘s Zie e Zii, so cerebral and yet so sinuous and rugged). The simplicity of
―Ingenuidade‖ has its immediate counterpoint in ―Alma barroca‖, crafted, dense, prickly, with voice and guitar as excited as well designed in ascending curves.

Closing the album, ―Sonho de caramujo‖, partnership with Aldir Blanc, works as a kind of profession of faith – a rite which clearly signalizes guidance, testifying a desire and a commitment. The shortness of lyrics goes against what is expected from a samba- enredo format, as well as the affirmation of an intimacy, almost closeness – ―I live inside the shell of my guitar‖ –, denies the collective tendency of the genre. The singing extroversion, in a very high register, seems to take to a paroxysm the interpretation of samba school singers while the choice of accompaniment – just two

guitars – once again breaks the expectation of the obvious presence of a percussion, here reduced to a few bangs on the guitar wood, gesture with which the ‗ snail‘ musician ensures the value and the totality of his home-shell. But if lyrics, inverting the signals of traditional samba-enredo, narrates a personal story, in first person, there is, however, the exotic landscape, to please carnival makers: ―…riding an elephant in Bombay‖. Invented landscape, fruit of imagination, we may then say, that this samba is a homage to the book and to reading, that dialogues in popular register with Castro Alves‘ classic,
―O livro e a América‖ (―Holy is the one who sows / Books…a handful of books…/ And order people to think!/ The book falling upon the soul/ It‘s germ — that makes the palm,/ It‘s rain – that fills the ocean (…)‖. Books and guitars are similar; they‘re essential shelters, intestines, yes, but providing fantasy and enlarging horizons of time and space.

Hence, in João Bosco‘s guitar shell it seems to echo the history of samba, of the Brazilian music, of the black music from the US, from the Caribbean, anonym music from ancient Gerais and the City of Salvador, as well as the Beatles and, at last, the whole musical work of Bosco himself along with his partners, highlight given, no doubt, to this magnificent Aldir Blanc and the assurance of a new great lyricist, Francisco Bosco. Everything gets bent and confused into a spiral – once again, the baroque – with twists and turns where shadow and light give body and soul to songs reaffirming life and driving death very far away.

Eucanaã Ferraz

João Bosco Ao Vivo – Obrigado, gente!

Neste ano de 2006, João Bosco completa 60 anos. São mais de trinta anos de carreira, desde o início orientada por um imperativo estritamente artístico, passando ao largo de oportunismos, modismos e afins. A ética musical de João Bosco sempre teve uma única lei, parágrafo único: a invenção. Seu compromisso com a canção popular é marcado pela firmeza de uma obra que atravessa décadas preocupando-se fundamentalmente com o próprio fazer da canção: melodia, ritmo, harmonia, letra, canto – a grande tradição da canção popular brasileira.

A importância histórica da data foi comemorada de forma inédita: com a gravação do primeiro DVD de João Bosco. O repertório de João Bosco Ao Vivo – Obrigado, gente!, é composto por alguns de seus memoráveis clássicos (os sambas da década de 70, a incontornável parceria com Aldir Blanc, os sucessos românticos dos anos 80/90, como “Memória da Pele”, “Desenho de Giz”, “Papel Maché”, etc.), todos em arranjos depurados através dos

muitos anos de intimidade com as canções. O público de João Bosco sabe que sua mineirice é restrita ao âmbito particular, pois ele é, definitivamente, um artista de palco, um artista cuja obra cresce no palco. Assim, João devia esse DVD àqueles que o têm acompanhado ao longo de sua carreira, bem como aos novos admiradores, para que todos tenham registrada a excelência de sua performance. Com participações especiais de Djavan, Guinga, Hamilton de Hollanda e Yamandu Costa, o DVD (uma co-produção do selo MP,B, da gravadora Universal e do Canal Brasil) foi gravado nos dias 15 e 16 de fevereiro no novo teatro do Ibirapuera, em São Paulo. Simultaneamente ao DVD, o projeto também chega às lojas no formato CD, contendo 16 faixas.

A formação com naipe de metais (além do quinteto de base formado por baixo, bateria, guitarra, percussão e o violão de João Bosco) revela-se uma escolha acertada, tanto nos sambas sincopados, como “Incompatibilidade de Gênios”, “Linha de Passe” e “Coisa Feita”, quanto nas baladas, como “Jade”, “Quando o Amor Acontece” e “Papel Maché”. Perpassa quase todos os arranjos um equilíbrio entre a forma canção e uma inventiva elaboração instrumental cujos caminhos surpreendentes nunca põem em risco a simplicidade essencial da canção. Ouça-se, a este respeito, faixas como “O Ronco da Cuíca”, “Odilê, Odilá”, ou o pot-pourri “Quilombo / Tiro de Misericórdia”. A propósito desse último, o arranjo, marcado por uma guitarra que procede por estocadas e a bateria explosiva de Kiko Freitas, revela com ainda maior expressividade a violência urbana brasileira em sua encruzilhada de raças, religiões e processos históricos.

São ainda notáveis as participações, especialíssimas, dos artistas convidados. Tocando publicamente com João Bosco pela primeira vez, Guinga comenta ao violão, elegantemente, a bela canção “Saída de Emergência”. Yamandu Costa traz seu virtuosismo impetuoso para o samba-choro “Benzetacil”, combinando humor, malícia e invenção num samba buliçoso daqueles em que se pode ler a alma brasileira. O também virtuose Hamilton de Hollanda empresta seu bandolim para o clássico “Linha de Passe”, num jogo de cordas que mais parece um Fla-Flu dos áureos tempos:   jogo   aberto,   placar   elástico,   artilheiros se consagrando. Finalmente, Djavan canta, com a mestria habitual, “Corsário”, em encontro emocionante com João Bosco.

Pelo ineditismo dos arranjos, pela excelência das canções, pela performance dos músicos e do compositor, pela abrangência de seu universo musical, pelo retrato da cultura brasileira, este trabalho deve ser considerado uma obra de referência, para os amigos novos e antigos de seu cancioneiro, na trajetória musical de João Bosco.

João Bosco estréia show do novo cd – Malabaristas do Sinal Vermelho

O novo disco de João Bosco, Malabaristas do Sinal Vermelho, vem sendo saudado pela crítica de música como um dos melhores discos de sua carreira e um dos melhores trabalhos na música popular brasileira dos últimos anos. Nesse disco, lançado em janeiro de 2003, João Bosco celebra 30 anos de carreira bem à sua maneira: com um repertório de canções inéditas (todas as faixas do disco são, à exceção da versão, muito pessoal, para Andar com Fé, de Gilberto Gil).

Mas não por acaso o disco foi batizado pela expressão “retrospectiva de inéditos”; pois essas novas canções trazem ao público, em plena forma, a já conhecida forma de João Bosco: o samba azeitado (Terreiro de Jesus), o samba-canção (Não me Arrependo de Nada), a ironia e o humor ácido (Jogos de Arrasar e Benzetacil), a canção de cunho social (Malabaristas do Sinal Vermelho), a cabeça de nego (a referida versão para Andar com Fé).

Essas canções, inéditas e, de certa forma, conhecidas, juntam-se a muitas outras de um repertório consagrado nesse show que comemora, inventivamente, 30 anos de carreira. Assim, não poderiam faltar algumas pérolas de sua parceria com Aldir Blanc, como Nação, Tiro de Misericórdia, A Nivel de; tampouco canções como Memória da Pele, Jade, Quando o Amor Acontece e Papel Maché. Entre outros sucessos gravados na memória do público.

Para apresentar esse show, João Bosco conta com o apoio dos seguintes músicos: Nelson Faria (guitarra e violões), Kiko Freitas (bateria) e Ney Conceição (baixo) – os dois primeiros tendo feito parte do elogiado show Na Esquina, registrado em disco (João Bosco Ao Vivo). Não faltará também, para os apreciadores da riqueza de seu violão acústico, um set solo, onde João canta sambas clássicos e outras canções que moram na intimidade da voz com o violão.

Senhoras do Amazonas – João Bosco & NDR BigBand

Depois que o último acorde majestoso de “Senhoras do Amazonas” se dissipou no estúdio, João colocou sua guitarra de lado, riu e deixou escapar: “Nem acredito!” Esse momento resume toda a história deste CD. E eu vou concordar com João. Em 2007, quando pedimos a ele para fazer uma turnê pelo Brasil com a NDR Bigband, nunca pensamos que três anos depois o resultado estaria bem aqui nas nossas mãos.

A primeira pergunta que tínhamos que enfrentar era: como orquestrar a música de um cara que não é apenas um dos maiores cantores-compositores, mas também um guitarrista fantástico que, sozinho, pode facilmente encantar e eletrizar uma plateia? Decidimos não utilizar música de fundo para o João, mas de alguma forma combinar sua mistura exclusiva de samba, rock e jazz com os recursos de uma orquestra de jazz contemporâneo europeu e seus solistas individuais. Com a ajuda dos contrabaixos incríveis de Ney Conceição e dos tambores impressionantes e inspiradores de Kiko Freitas, em alguns momentos a NDR Bigband de fato alcançou a energia de um vigoroso grupo de samba.

Este CD integra algumas das muitas personas de João Bosco: sua “africanidade” (a faceta afrobrasileira baseada no samba, como em “Nação”), sua faceta de rock’n’roll (“Bate um Balaio”), sua extraordinária sensibilidade para baladas (“Saída de Emergência”) e seu surpreendente talento como cantor de jazz. João pode transformar facilmente uma canção em uma aventura; basta ouvir seu “Desafinado” cheio de improvisos. Com sua última composição e duas outras canções, prestamos também um tributo ao grande Antonio Carlos Jobim, um grande amigo e fonte de inspiração para o João. Foi Maria Schneider quem sugeriu incluir a canção título, “Senhoras do Amazonas”, neste projeto, e assim fizemos. Essa é para você, Maria! A maior parte das canções originais de João provém de sua colaboração com Aldir Blanc, simplesmente uma das parcerias mais criativas da história da música popular brasileira. Essas canções falam de vida real e de pessoas reais, de bons e maus momentos mas, como todo verdadeiro artista, eles conduziram as histórias para um nível acima e além da realidade; graças à sensibilidade de Blanc pela poesia dos ritmos e à sensibilidade de João pela musicalidade das palavras. E esse é o grande motivo pelo qual essa música soa tão atual, mesmo tendo passado algumas décadas.

Outro motivo é o incrível talento de Steve Gray como arranjador e sua capacidade de criar empatia. Steve chegou ao âmago das coisas e transformou tudo em algo novo. Honestamente, eu não sabia que ele era fã da música de João até pedirmos para ele participar do projeto: “É claro que eu quero! Juntamente com AI Jarreau, João é meu cantor predileto”, disse Steve. Sem dúvida, essa foi uma precondição perfeita. É uma pena que Steve nunca tenha tido a chance de ouvir o resultado de seu trabalho, pois ele faleceu logo após o início das gravações. Mas estou muito feliz com o encontro dele com João. Lembro-me de Steve sentado no canto do estúdio enquanto João cantava, sorrindo de maneira misteriosa, como ele sempre fazia quando estava feliz. O arranjo foi feito no estilo dos grandes compositores clássicos: desenvolvendo uma ideia após a outra, quase sem repetições, nem o menor dos motivos. É por isso que a música pode crescer a cada execução. E como ocorre com os grandes mestres, Steve fazia coisas complexas parecerem muito simples. Músicos e apreciadores podem literalmente “mergulhar” nas harmonias criadas por ele. Por fim, do encontro entre João Bosco, Steve Gray e a NDR Bigband, tentamos redescobrir e oxalá reinventar um importante capítulo da música brasileira. Sei que pode parecer ousadia, mas como João diz: “É esse o sentido da arte: ousar coisas novas, todos os dias”.

Stefan Gerdes

Senhoras do Amazonas – João Bosco & NDR Bigband

After the last majestic chord of “Senhoras do Amazonas” has faded away in the Studio, Joao puts his guitar aside, laughs and blurts out: “I don’t believe that! ” That little moment sums up the whole story of this CD. And I have go agree with Joao. When we asked him in 2007 to do a tour in Brazil with the NDR Bigband, we never thought that three years later the result would be right here in our hands.

The first question we had to deal with was: how can you orchestrate the music of a man who is not only one of the greatest singer-songwriters, but who is also a fantastic guitarist and can easily enchant and electrify the audience alone, just by himself? We decided not to play background music for Joao but to somehow meet him in the middle: to combine his unique mixture of Samba, Rock and Jazz with the possibilities of a contemporary European Jazz orchestra and its individual soloists. With the help of Ney Conceicao’s groovy bass lines and Kiko Freitas’ breathtaking and inspiring drumming the NDR Bigband sometimes really reached the energy of a steaming Samba band.

This CD integrates a few of the many sides of Joao Bosco: his ” africanidade” — the afro-brazilian, samba based side (like in “Nagao”), his Rock’n’Roll side (“bate urn balaio”), his wonderful sense for ballads (“Saida de Emergencia”) and his astonishing talent as a Jazz singer: Joao can turn a song easily into a adverturous journey (just listen to his scatting o “desafinado”). With this latter composition and two other songs we also payed tribute to the great Antonio Carlos Jobim, one of Joao’s dear friends and heroes. It was Maria Schneider who suggested to include the title song, “Senhoras do Amazonas”, in this project. So we did (this one’s for you, Maria!). Most of Joao’s originals derive from his collaboration with Aldir Branc — simply one of the most creative teams in the history of the MOsica Popular Brasileira. Their songs tell about real life and real people, about their good and hard times, but like any true artist they uplift the stories to a level above and beyond reality — thanks to Blanc’s feeling for the poetry of rhythms and Joao’s feeling for the musicality of words. And that is one big reason why this music still sounds so fresh, even after decades.

Another reason is Steve Gray’s incredible talent as an arranger and his empathetic abilities: Steve reached the core of things and turned it into something new. To be honest, I didn’t know that he was a fan of Joao’s music until he was asked to join in: “Of course I’d love to”, he said,”next to Al Jarreau, Joao is my favorite singer!” That was indeed a perfect precondition. It is so sad that Steve never had the chance to listen to the result of his work. He died shortly after the beginning of the recordings. But I am very glad that Steve and Joao did meet. I remember Steve sitting in the corner of the studio while Joao was singing, smiling whimsically as he always did, when he was happy. He arranged the music in the style of the great classical composers, developing ideas after ideas, hardly ever repeating anything, not even the smallest motif. That’s why the music can grow with every listening. And like all the great masters, Steve could make complex things sound so easy. Musicians and listeners can literally “bathe” in the harmonies he created. So in the end with the meeting of Joao Bosco, Steve Gray and the NDR Bigband we tried to re-discover and hopefully re-invent an important chapter of Brazilian music. I know this might sound daring, but like Joao says: “That’s what art is about: to dare new things every day”

Stefan Gerdes

RELEASES E BIOGRAFIAS

Auto Retrato

Há uma suspeita de que a escassez de cabelos na cabeça influi na quantidade do sono. Enquanto isso meu nariz aponta para a linha do nada onde tudo se reparte em idéias, ilhas e continentes. Meus olhos confirmam tudo. A minha boca é toda ouvidos para o meu coração. Os meus ouvidos atentam para outras bocas. 

Amamentado pelo meu violão, moro na estrada. Sem saber quem sou e nem porque vim, eu vou. Da primeira vez que nasci, lá pelo ano de 1946, trouxe comigo uma grande alegria para o meu pai que até aquele momento contabilizava o feito de cinco moças e mais os olhares interrogativos e desconfiados da colônia árabe pontenovense. Como primeiro filho homem ajudei em sua redenção.

Cresci em meio aos matagais, trilhas, mata-burro, veredas e grutas; descalço, tive os pés regulados para andar por esses caminhos ao som de pios de uma fauna alegre e ingênua; matuto, vivia contando estrelas, ouvindo carrilhões e sonhava muito. 

Quando os libaneses se reuniam em nossa casa, se entendiam naquela língua de quem gosta de montar em camelo. Eu achava aquilo meio estranho. Era como clamar no deserto.

Logo depois eu aprendi a fumar, matar as aulas de um Colégio Salesiano, e fui apresentado a um anjo de grande topete negro, envergado sobre uma guitarra, cuja canção dizia para mim: Vai João, ser torto na vida. 
Passei pela terra de Aleijadinho e o meu coração que até então era vadio, ficou barroco. Subi e desci ladeiras. Descobri que na vida existem mais hipóteses que teoremas. Supor é melhor que demonstrar e na dúvida mora a vontade de continuar.

Foi assim que deixei a memória, o patrimônio de séculos construídos pelas mãos do homem, o calçamento em forma de pé-de-moleque, o silêncio das almas, o barulho interno de minha alma. Calcei os sapatos, peguei o trem e vim pra cá, onde as ruas são largas, retas e simétricas; as sirenes são cortantes e os pastores das almas são barulhentos. O vizinho não mora ao lado, as árvores são introvertidas e os pios das aves são intrigantes. 

Quando nasci da segunda vez, o meu coração bateu aflito. Mas logo que vi o mar, serenei pois tudo que havia existido voltou subitamente e volta sempre quando estou caminhando no calçadão que vai do Leblon ao Arpoador. Aí, o que foi e o que poderia vir a a ser andam comigo, incluindo as sementes, o pão de queijo e a goiabada cascão. 

Os meus filhos Francisco e Júlia nasceram aqui mesmo cujo padroeiro (São Sebastião) é o mesmo da minha cidade natal. Ângela, minha companheira inseparável em todas essas andanças e mãe dos nossos filhos, foi criada em Ponte Nova mas também é natural da Cidade Maravilhosa. Bem que eu devia ter desconfiado que aquelas Congadas e Folias me trariam até Clementina de Jesus. O meu coração ficou ativo e cantou: “Atividade no Abano / Antes que o fogo se apague”.

Eu sou do signo de Câncer, por isso prefiro uma toca, entretanto aprendi a contrariar o meu signo várias vezes, por isso gosto tanto de viajar por esse mundo afora, só não consigo contrariar o meu signo de mineiro. 

Eu sei que esse deveria ser um retrato pintado ou desenhado, falado ou escrito do autor pelo próprio autor, mas quando se trata de revelar-me, prefiro assim, meio de lado (do jeito que a gente anda no samba), no lugar de frente ou verso. O silêncio, a liberdade e a terceira margem do rio foram inventados em Minas Gerais. 

O amor é o meu dia de folga. Meu melhor trabalho é a minha família, minha alegria é Rubro-Negra. Quem sabe de mim é o meu violão. Nesse fim de semana, se eu não for pra Belô, a gente se cruza do calçadão.

João Bosco por Sérgio Ricardo

Ouvi João Bosco pela primeira vez em minha casa, quando estava escolhendo o artista novo, desconhecido, que viria gravar o outro lado do compacto simples do Disco de Bolso. Achava que seria meio impossível encontrar alguém que tivesse fôlego para encarar o artista consagrado do outro lado do disco, Tom Jobim, com Águas de Março, temendo que viesse a jogar o desconhecido numa “gelada”. Foi um susto. Qualquer uma das músicas que ele apresentou naquele dia, poderia entrar no disco. Depois de muita conversa e controversia, resolvemos ficar com Agnus Sei, considerando sua parceria com outro craque, Aldir Blanc. Depois do disco pronto, Tom Jobim pediu para ouvir o outro lado. Depois de uma grande pausa, olhou pra mim e disse: Ô Sergio, você está querendo me derrubar! Cobriu o João de elogios. Rimos muito, ainda sem saber que aquele seria um disco histórico, pois lançava Aguas de Março, considerada posteriormente como a música do século e a descoberta de “um tal de João Bosco”.

Não vou me ater à nossa convivência cercada de ótimos momentos, pois seria assunto para um livro. Quero fazer uma análise, isenta, do artista. E digo simplesmente, que se trata de um fenômeno. Sua melodia, seu ritmo, sua harmonia, seu censo de arranjo, ultrapassam os níveis aceitáveis pelos mestres. Seu violão é eletrizante, e suas levadas antológicas por descreverem o ritmo brasileiro “nunca dantes navegados”, comprovando a diversidade de nossa rítmica de maneira rica e surpreendente. Sua voz alinhava todo esse universo sonoro com modesta intervenção, dando chance para que os versos ecoem com a mensagem pretendida. Na forma final, ao juntar todos estes valores num palco, é a explosão de um verdadeiro gênio musical da raça. É o Brasil se mostrando forte, ancorado em suas verdadeiras origens, ostensiva e orgulhosamente assumido. Ao ouvi-lo, da gosto de ser brasileiro.”

SERGIO RICARDO

The first time I heard João Bosco, I was at home selecting a new unknown artist, who would record the other side of the single for the Disco de Bolso project. I thought almost impossible finding someone who had the guts to face the renowned artist on the other side of the record – Tom Jobim singing Águas de Março – and fearful of putting the unknown artist in a no-win situation. It was scary. Any song he presented that day could be part of the record. After a long conversation and controversy, we’ve decided to stick with Agnus Sei, considering his partnership with another ace, Aldir Blanc. When the single was already recorded, Tom Jobim asked to listen to the other side. There was a long pause, then he stared at me and said: ‘Come on Sergio, are you trying to pull me down?!’ He praised João. We burst out laughing, not yet aware that this single would be a historical record, due to the launching of Aguas de Março, later on regarded as the song of the Century, and the discovery of “a certain João Bosco”.

I will not mention our friendship, surrounded by wonderful moments, since that could perhaps serve as a subject for an entire book. I wish to provide a fair analysis of the artist. And I simply say he is a phenomenon. His melodies, his rhythm, his harmony, his sense of arrangement surpass the levels accepted by masters. His guitar is thrilling, and his swing distinguished for describing Brazilian ‘never before explored’ rhythms, once again corroborating the diversity of our rhythms through a rich and striking work. His voice aligned such sonorous universe with humble intervention, giving lyrics a chance to reflect the intended message. Fundamentally, when putting all these values on a stage, the explosion of a truly musical genius could be seen. It’s a strong Brazil emerging, showing its deep-rooted origins, proudly and openly assuming its role. Listening to him make us proud of being Brazilians.

Quarenta Anos Depois

Desde a sua estreia, sob a benção jobiniana, num disco compacto que tinha “Agnus sei” de um lado e “Águas de março” de outro, João Bosco está completando 40 anos de carreira. Como no poema de Drummond, pode-­‐se dizer que ele atinge a marca na seguinte situação: “Quarenta anos e nenhum problema/ resolvido”. Mas muitos problemas colocados, com originalidade e mestria. São esses problemas musicais que ele reúne e aprofunda neses cd e dvd que lança em comemoração à efeméride.

Para começar por um de seus traços fundamentais, João Bosco é a um tempo homem-­‐música e homem-­‐canção. Essa tensão entre a canção (relação irredutível entre melodia e letra) e a música (tudo o que excede essa relação) atravessa a sua obra, se manifestando com muita força após a interrupção da parceria com Aldir Blanc. Em seu último disco, Não vou pro céu, mas já não vivo no chão, João Bosco realizara um rigoroso trabalho de reduzir essa tensão à canção pura: sem ornamentos, com canto despojado, só o osso.

Agora, como a ocasião é de revisar toda a obra, apreendendo os seus sentidos principais, as duas lógicas coabitam o espaço. Ouçamos faixas como “Tarde”, “Trem bala”, “Tanajura”, “Lilia”, “Bodas de prata”; aí a canção é invadida e alargada por dentro, por meio da exuberância musical de músicos da categoria de um Toninho Horta, de um Cristóvão Bastos, de um Ricardo Silveira. A música integra a canção, mas a excede. Hoje, quando se fala na “canção expandida” de bandas como Los Hermanos e Radiohead, é preciso lembrar que a tensão entre música e canção existe na música popular brasileira há muito tempo: de formas diferentes, praticam-­‐na nomes como Johnny Alf, Tom Jobim, Guinga, Milton Nascimento e João Bosco.

Ouçamos, por outro lado, faixas como “Pra que mentir”, “Tudo se transformou”, “Eu não sei seu nome inteiro”. Nessas é o homem-­‐canção quem assume o proscênio, o João Bosco autor e intérprete de inúmeros sucessos redondos, exatos, sem tirar nem pôr.
Como os nossos tempos de mashups e cut and paste têm enfatizado, nenhuma criação se faz a sós, por si só. Assim, os 40 anos de carreira de João Bosco são os 40 anos de diálogo de sua obra com mestres da tradição e, principalmente, da sua geração. O presente trabalho é também uma leitura pessoal dessa moderna época de ouro da música brasileira que são os anos 50/60/70. Estão presentes a densidade divina de Milton Nascimento (em “Lilia” e “Tarde”), o samba meditativo de Paulinho da Viola (“Tudo se transformou”), a bossa eterna do maestro soberano Tom Jobim (“Ligia” e “Fotografia”), o balanço caribenho incomparável de João Donato (“Eu não sei seu nome inteiro” e “Drume negrita”), o Chico Buarque herdeiro direto dos sambas simples dos anos 30 (“Bom tempo”). Daí a abertura inusual dos trabalhos, com a voz de Milton Nascimento em “Agnus sei”. “Agnus sei” é o começo de tudo, mas Milton é o que está no começo do começo, é o que torna o começo possível.

Numa confluência complexa de vários tempos, a cervical da história do samba também é evocada, numa bela leitura de “Pra que mentir”, de Noel e Vadico. E o futuro se projeta -­‐ evoé jovens artistas -­‐ no dueto com a voz límpida de Robeta Sá em “De frente pro crime”. Grandes artistas formulam grandes problemas: em João Bosco, o outro se torna o mais próprio, o passado se revela o futuro: clássicos como “Fotografia” e “Drume negrita” recebem interpretações altamente criativas, e seu

próprio passado musical emerge outro e novo de suas mãos, como mostram os arranjos de “Plataforma”, na companhia luxuosa das cordas do Trio Madeira, e “Bodas de prata”, percorrida pelo pensamento musical de Toninho Horta. Dessa capacidade de reformulação radical, João Bosco já havia dado provas no disco Dá licença, meu senhor, de 1996.

Da perspectiva da geografia -­‐ ou dos gêneros, se preferirmos -­‐, os 40 anos da obra de João Bosco também se acham aqui muito bem representados. O mineiro mais carioca da música popular é talvez o único que pode cantar, que pode ser ao mesmo tempo a densidade barroca das Gerais e a superfície escorregadia do Estácio. Uma e outra marcam forte presença nesse trabalho. A alma barroca inaugura o disco, com “Agnus sei”. O samba carioca o perpassa, com “O mestre sala dos mares” (cantado em duo com Chico Buarque, que retribui a visita de João Bosco a seu último disco), “De frente pro crime” (com Roberta Sá, como já disse), entre outras. O bolero latino-­‐ americano, que fez os ouvidos da geração formada nos anos 40/50, também comparece no clássico bolero-­‐acalanto de Bola de Nieve, “Drume negrita”. A negritude de boca cheia está em “Da África a Sapucaí”, grande e pouco conhecido samba da dupla Bosco/Blanc. E os trabalhos se despedem com “Bom tempo”, no duo de João Bosco e Chico Buarque que nos faz lembrar que a canção popular tem um compromisso com a alegria, com a leveza, com a esperança. Como nada em João Bosco é ingênuo, o arranjo é também uma evocação de João Gilberto, com seu crescendo sutil de percussões; e sente-­‐se ainda as presenças gigantescas de Caymmi, na simplicidade de tudo, e de Ary Barroso, no piano de Cristóvão Bastos. Por trás de uma geração, a outra. Aquela explicitada, essa citada.

Em suma, 40 anos e nenhum problema resolvido. Mas muitos brilhantemente formulados.

Francisco Bosco

Não vou pro céu mas já não vivo no chão

Depois de mais de 40 anos de carreira e centenas de músicas compostas com Aldir Blanc, finalmente uma das maiores duplas da história da música brasileira gerou a canção que retrata João Bosco à perfeição, “Sonho de caramujo”. “Cumpri o astral de caramujo musical/Hoje eu gripo ou canto/Não vou pro céu, mas já não vivo no chão/Eu moro dentro da casca do meu violão”, diz a letra de Aldir sobre o típico samba de João de onde foi tirado o título do CD, “Não vou pro céu, mas já não vivo no chão”, que agora vira show e turnê que, como diz de novo a letra, vai percorrer mundo, de Quixeramobim e Bombaim, com João Bosco a bordo do seu violão.

Mesmo sem ser explicitamente autobiográfico, o novo trabalho de João Bosco é uma espécie de síntese de sua vida e carreira, além de conciliar seu glorioso passado musical com um futuro não menos promissor. Do passado, João retoma sua (mais que histórica) mítica parceria com Aldir Blanc. Para o futuro, João confirma a excelência de seu mais recente parceiro constante, o próprio filho Francisco Bosco, ensaísta, poeta e letrista tão de mão cheia que impossibilita qualquer possível acusação de nepotismo. O próprio mestre Aldir Blanc declarou à imprensa recentemente que o jovem Francisco está mais maduro como letrista do que ele próprio, Aldir, quando tinha a idade dele.

Através de suas melodias, de sua voz e de seu violão cada vez mais perfeito e tão característico que não precisa ser anunciado para se saber que é dele, João Bosco conta sua história auxiliado pelas palavras precisas dos parceiros. Com Aldir, parceiro desde 1971 quando fizeram o samba carioca “Bala com bala” e a canção barroco-mineira “Agnus sei” e foram consagrados na voz de Elis Regina, João celebra a arte da parceria (e outras formas de amor) em “Plural singular”: “Você é e sempre foi/Meu par/E sem par/O não-ser virando ser/Nascer/Transcender (…)/Um amor tão singular é plural/Grão de jóia sideral”.

Já em “Mentiras de verdade”, além de homenagear uma de suas principais influências musicais que é o gênero samba-canção, João e Aldir narram em música a longa separação da parceria que viveram entre o início dos anos 1980 e o início de século XXI, dão sua versão da tão folclorizada briga e celebram o reatamento da parceria: “Verdade, foi tudo verdade/Eu hoje admito:/Somos um mito, sim/Maldade e carinho/Ternura sem fim/Num laço/Coleira de cetim/Quero esquecer de mim/Ser mais você, menos do que eu/Verdade e mentira que o amor entre nós reviveu”.

A irreverência carioca de Aldir, tão constante na dupla encontra a contrição mineira de João no samba “Navalha” e suas contundentes metáforas religiosas: “Teu sorriso é uma navalha/Que abre meu coração/O sangue pelo peito/É do Cristo na Paixão”. Tão conhecedor do caminho criativo do pai quanto Aldir, Francisco Bosco também busca traduzir João Bosco nas contradições da “Alma barroca”: “Eu tenho o pé no chão/E o coração no ar/A minha alma é barroca/Serei bom e fiel/Seu admirador/Serei o mais cruel/Por nada, sem querer/A culpa é de ninguém/A dor é de nós dois/E nosso grande amor também”.

Sim, João Bosco é barroco e em “Não vou pro céu, mas já não vivo no chão” ele canta essa alma barroca que cala tão fundo em cada brasileiro. Mas aproveita também por viajar por várias de suas influências musicais e literárias. Com parceiro novo, o paulista Carlos Rennó explora sua veia lírica na sofisticada e esperançosa “Pronta pra próxima” e na amorosíssima “Pintura”, canções leves, quase jobinianas como tantas que João já compôs. Já com outro parceiro novo, o carioca Nei Lopes, João explora outra faceta tão importante de sua obra (em discos como “Gagabirô” ou “Cabeça de nego”), a influência da música negra universal, em “Jimbo no jazz”, uma homenagem a Ray Charles que vai se transformando numa floresta de ritmos que têm em comum o fato de terem vindo da África: “E o jazz e o samba e a milonga e o tango e o candombe/E a rumba e o mambo, tudo é lá do Congo”.

Igualmente confortável nas grandes canções de amor (lembrem um “Papel machê” um “O amor quando acontece”, etc.) ou nos improvisos afro, João Bosco destila influências caribenhas em “Tanajura”. Mas volta sempre às modinhas cariocas como em “Desnortes”, uma bela homenagem também na letra de Francisco Bosco ao Rio de Janeiro, cidade que o mineiro de Ponte Nova escolheu para morar depois que foi apadrinhado musicalmente pelo grande poeta da cidade, Vinicius de Moraes, ainda no final dos anos 1960.

Se Vinicius foi padrinho, Clementina de Jesus foi madrinha, gravando músicas suas como “Incompatibilidade de gênios” e apresentando-se com ele ainda no início da carreira. E Clementina está presente na recriação que João faz do belo samba “Ingenuidade” (de Serafim Adriano), que ambos cantaram juntos quando abriram, num concerto antológico no Rio de Janeiro em 1976, a série de shows Seis e Meia.

Assim, meio que como sem querer, fazendo parecer um trabalho normal, um conjunto de novas canões, João Bosco repassa toda sua trajetória musical. Ver João Bosco desfiando seu amplo leque musical em “Não vou pro céu, mas já não vivo no chão” é, como o título indica, voar pela própria história singular da música brasileira.

Hugo Sukman

Não vou pro céu mas já não vivo no chão

Building on a forty year career, along with hundreds of songs composed with Aldir Blanc, one of the greatest duos in Brazilian music has finally generated a song that perfectly portrays João Bosco, “Sonho de Caramujo” (Snail’s Dream). “ I’ve met the fate of a musical snail/Today I grip or sing/Not heading for heaven but no longer living on the ground/ I live inside the shell of my guitar”. Aldir’s lyrics brings to light Bosco’s typical samba, as he has appropriately named the album, ” Não vou pro céu, mas já não vivo no chão“, which is now a concert tour and will travel around the world from Quixeramobim to Bombaim, featuring João Bosco, himself, on board with his guitar.

Although not clearly autobiographical, Bosco’s new work can be considered a synthesis of his life and his career, reconciling his glorious musical past with a promising future. From previous years and past accomplishments, João rescues his (more than historical) mythical partnership with Aldir Blanc. As for his future musical alliances, João highlights the great talent of his latest regular partner, his own son, Francisco Bosco, a truly outstanding essayist, poet, and song writer that is beyond any accusation of nepotism. Master Aldir Blanc has already revealed through the press that Francisco is more of a mature songwriter as he was himself at that age.

Through his melodies, his voice, and his ever increasing sophisticated guitar playing, so unique and identifiable that his name not even needs to be mentioned, João Bosco shares his stories supported by his partner’s precise lyrics. Together with Aldir, his partner since 1971, the year they composed the carioca samba, “Bala com Bala”, and the barroco- mineiro song, “Agnus Sei” (both made famous by Elis Regina), João celebrates the art and nuance of partnership (and other forms of love) in the song “Plural Singular” …”You are and have always been/My Pair/And no pair/Non-being becoming being/To be born/Transcended (…)/A love so singular is plural/ Grain of sidereal jewelry”.

On the track, “Mentiras de Verdade”, besides paying homage to one of his major forms of musical influences, the samba-canção, João and Aldir compose a musical narration about the long separation that their partnership experienced between the 1980’s and the early years of this 21st century, telling their version of the much publicized disagreement, as well as, celebrating their reconciliation. “True, it’s true/ Today I admit/ Yes, we are a myth/ Cruelty and tenderness/ endless tenderness/ Tied with a bow/ Satin leash/ Chose to forget about myself/ To be more yourself, less than me/ Truth and lies that love between us has revived”.

Aldir, with his typical irreverence from Rio de Janeiro (so common in their work), matches Bosco’s typical Minas Gerais’ constriction in the samba “Navalha” with its forceful religious metaphors “Your smile is a blade/ That opens my heart/ Blood on the chest/ Blood of Christ’s passion”. Francisco Bosco acknowledges his father’s creative process as much as Aldir, and also tries to translate João Bosco in the contradictions of “Alma Barroca”: “My feet are on the ground/ My heart is in the air/ My soul is baroque/ I’ll be good and loyal/ Your admirer/ The most cruel/ No reason, incidentally/ No one to blame/ Pain belongs to the both of us/ And so does our love”.

Yes, João Bosco is baroque, and in the recording of ” Não vou pro céu, mas já não vivo no chão “, he sings of his baroque soul that touches the hearts of all Brazilians! But he also uses the emotion to travel through many of his musical and literary influences. With a new partner, Carlos Rennó (from São Paulo), he explores his lyrical vein in the sophisticated and faithful, “Pronta pra Próxima” as well as in the passionate “Pintura”; light songs, almost Jobinianos, as many of Bosco’s compositions tend to be. With still another new partner, the carioca Nei Lopes, João explores and displays another aspect of his work (present in albums such as ” Gagabirô ” or ” Cabeça de nego”), which is the presence of a universal black music, in “Jimbo no Jazz”, a tribute to Ray Charles, which grows into a forest of rhythms that have their African roots in common: “And the jazz the samba and the milonga and the tango and candombe/ And the rumba and the mambo, they all come from Congo”.

Equally comfortable in great love songs (think of Papel machê” or “O amor quando acontece”, among others), and in Afro improvisations, João Bosco distills Caribbean influences in “Tanajura”. Although he always returns to Rio de Janeiro’s ditties, like “Desnortes”, a beautiful homage (also written by Francisco Bosco) to Rio de Janeiro, the city that this mineiro decided to live in after being ‘musically’ adopted by the city’s greatest poet, Vinicius de Moraes, in the end of the 1960’s.

If Vinicius was the sponsor of Bosco, then Clementina de Jesus was the godmother, recording his songs, such as “Incompatibildade de gênios “, while encouraging him at the very beginning of his career. Clementina’s influence is present in the recreation that João recorded of the gorgeous samba “Ingenuidade” (by Serafim Adriano), which they sang together when they opened in the 1976 anthological concert, in Rio de Janeiro, the concerts series named Seis e Meia.

Just like this, appearing quite unintentional, just a regular produced album with another set of new songs, João Bosco reviews his entire musical path! Watching and listening to João Bosco demonstrate his broad musical horizons in the album, ” Não vou pro céu, mas já não vivo no chão” is, as the title suggests, like flying into the unique history of Brazilian music.

Release 2006

Neste ano de 2006, João Bosco completa 60 anos. São mais de trinta anos de uma carreira, como é notório, desde o início orientada por um imperativo estritamente artístico, passando ao largo de oportunismos, modismos e afins. A ética musical de João Bosco sempre teve uma única lei, parágrafo único: a invenção. Seu compromisso com a canção popular é marcado pela firmeza de uma obra que atravessa as décadas preocupando-se fundamentalmente com o próprio fazer da canção: melodia, ritmo, harmonia, letra, canto – a grande tradição da canção popular brasileira.

A importância histórica da data convidou a que se a comemorasse em duplo estilo: primeiramente, gravando um DVD – o primeiro de João Bosco – com um repertório feito de seus memoráveis clássicos (dos sambas da década de 70, da incontornável parceria com Aldir Blanc, aos sucessos românticos dos anos 80/90, como “Memória da Pele”, “Desenho de Giz”, “Papel Maché”, etc.), todos em arranjos depurados através dos muitos anos de intimidade com as canções. O público de João Bosco sabe que sua mineirice é restrita ao âmbito particular, pois João é, definitivamente, um artista de palco, um artista cuja obra cresce no palco. Assim, João devia esse DVD àqueles que o têm acompanhado ao longo de sua carreira, bem como a seu público por vir, para que aqueles e estes tenham registrada a excelência de sua performance. Com participações especiais de Djavan e Yamandu Costa, o DVD (uma co-produção do selo MP,B, da gravadora Universal e do Canal Brasil) será gravado nos dias 15 e 16 de fevereiro, no novo teatro do Ibirapuera, em São Paulo.

Mas, como não poderia deixar de ser, em se tratando do inquieto João Bosco, o ano de 2006 será de comemorações, não apenas retrospectivas, mas também prospectivas: no segundo semestre o artista lançará seu novo disco com repertório de canções inéditas. Nele, João retoma a parceria com Aldir Blanc, e inclui canções de outros parceiros, como Francisco Bosco, Nei Lopes e Carlos Rennó. Na esteira do sucesso de crítica de seu último disco, “Malabaristas do Sinal Vermelho” (indicado ao Grammy Latino, ao prêmio Tim de música brasileira, e eleito pelo jornal O Globo um dos melhores shows do ano), o novo disco de João Bosco desde já promete. O compositor deve entrar em estúdio nos meses de maio/junho, com lançamento previsto para outubro, coroando, assim, um ano histórico desse artista que é, inegavelmente, um patrimônio da canção popular brasileira.

Malabaristas do Sinal Vermelho

Dentre as milhares de imagens que povoam o cotidiano da cidade do Rio de Janeiro nesse começo de século, uma se destaca: as crianças de rua fazendo malabarismos com bolinhas de tênis diante dos carros parados sob o sinal vermelho. Destaca-se porque reúne e sintetiza, em uma única cena, concreta e brutal, os aspectos mais característicos do conflito social sem tréguas que tem lugar na cidade. Esses aspectos se condensam todos no momento em que a criança, ao pedir um trocado ao motorista, após fazer sua exibição, dá de cara com um vidro fechado. No vidro, toda a complexidade da cidade: o vidro separa, declara o muro social, mas esse muro é transparente e contraditório, pois através dele a criança tem acesso a sua imagem, reconhece sua marginalidade num espelho que é na verdade o olhar do outro, e que lhe sentencia justamente sua impossibilidade de ser vista.

O vidro é a metáfora da cidade: partida, sim, mas por fronteiras extremamente precárias, transparentes, vulneráveis. O vidro é limite e espelho, lugar onde as identidades se separam e esclarecem reciprocamente. O vidro é também limiar: revela a invisibilidade dos excluídos para eles mesmos, ao mesmo tempo que revela a excessiva e vulnerável visibilidade de quem está do outro lado. Tudo isso numa única imagem. Mas essa imagem, experimentada ao rés do real, pode ser vivenciada sem a dimensão de seu sentido. É preciso dar distância a essa imagem, destacá-la do real e então tentar tornar visível o sentido que a sustenta: pois muitas vezes a representação é necessária para que se possa experimentar o real em toda sua intensidade de sentido, sentido que escapa quando, por estarmos excessivamente próximos, não temos a distância necessária para enxergar. Pois dar sentido, em forma de canções, a essa e outras experiências – seja do cotidiano da cidade (como na faixa-título, ou em “Cinema Cidade” e “Distâncias”), seja dos relacionamentos amorosos (“Eu Não Sei Seu Nome Inteiro”, “Não me Arrependo de Nada”) ou de nossa condição histórica e existencial (“Moral da História”, “Pernas de Pau”)
– da vida nesse começo de século é a tarefa a que se dedicou esse disco de João Bosco,
Malabaristas do Sinal Vermelho.

Nele, reconheceremos a manutenção ativa de certos traços da rubrica pessoal de João Bosco: o samba azeitado (“Terreiro de Jesus”, “De Mamadeira”), a cabeça de nego

(sua versão para “Andar com Fé”), o gosto pela ironia e o humor (“Benzetacil”, “Jogos de Arrasar”), as belas melodias das canções de amor (“Eu Não Sei Seu Nome Inteiro”, “Não me Arrependo de Nada”). Pois de um disco novo de um João Gilberto, por exemplo, não se deseja qualquer “novidade”, apenas que a sua forma esteja em forma. Mas além desses traços, nos quais se reconhece a diferença de sua assinatura, outros traços se voltam contra essa própria assinatura, diferindo dela mesma. É que João Bosco, que acaba de completar trinta anos de carreira, percebeu que a maneira de tornar essa data realmente comemorativa era entregar-se a um projeto autoral, quando geralmente uma data redonda e significativa como esta serve de pretexto a lançamentos do tipo “revisão- de-carreira-sob-forma-de-antologia”.

E autoral no sentido mais rigoroso do termo: insistindo na construção de uma diferença, tanto em relação à produção cultural de seu tempo, quanto em relação a sua própria marca. Isso se manifesta em canções como “Moral da História”, carregada da estranheza e dramaticidade de um pequeno épico pós-moderno; na utilização de recursos da música eletrônica para fins expressivos em “Cinema Cidade”, que tem a participação de Seu Jorge; ou ainda na atualização da temática social (tão característica de seu trabalho nos anos setenta), da faixa-título, que conta com a participação do coral da Escola de Música da Rocinha; no diálogo entre Villa-Lobos e o maracatu, em “Pernas de Pau”; finalmente em “Distâncias”, uma reflexão musical sobre os percursos da identidade brasileira.

Francisco Bosco

Os Bosco na esquina musical da brasilidade

Esquina, bem se sabe, é ponto de encontro. Nela se contam histórias e se esboçam projetos. Para ela convergem memórias e expectativas. Portanto, na esquina, passado e presente se fundem em parceria com o aceno que vem do futuro. Talvez, por essa imagem, melhor se compreenda a proposta formulada no novo trabalho que, a exemplo de Mil e uma aldeias, reedita (e consolida) a parceria entre João Bosco e Francisco Bosco. Doze faixas (nove autorais e três releituras) dão formato final a Na esquina. Numerologia à parte, lembramos que 12 e 9 são, respectivamente, números que evocam a totalidade de ciclos temporais: o tempo de doze meses da Terra; a duração de nove meses para a gestação de um ser. O conceito, pois, que parece estar na origem do recente CD não esconde o propósito de trazer em si o olhar de uma vida que passa em revista a história de um tempo musical no qual referências se mostram reverências de gratidão de alguém que, ao chegar à vida, encontrou um legado tanto nas raízes brasileiras quanto naquelas que as circundam.

As três composições estrangeiras Fools Rush In (Passos de Amador), Siboney e True Love (Amar, Amar) não têm seu relevo maior pela originalidade (embora ela se faça presente) que lhes tenha destinado a interpretação. Não, elas valem mais como citações que costuram a história do tempo musical, seja no mundo, seja no Brasil. Assim, nomes como Johnny Mercer, Lecuona e Cole Porter recebem de João Bosco a saudação pela importância de suas contribuições aos destinos da música popular. Nessas três referências também estão contempladas as Américas às quais, como brasileiros, pertencemos. A partir daí, uma história em dois planos é contada: 1) a história da música; 2) a história de uma vida entregue à música. O ponto de encontro para esses enredos é a esquina que efetivamente inaugura a pesquisa autoral na segunda faixa, cujas palavras iniciais revelam que “eu fiquei (…)/ eu fiquei lá (…)/ e ainda tô/…/”. Um ser se sentiu encantado na esquina da música e dos ritmos, com os quais nascia a identidade de João Bosco. Nessa rememoração vem um canto que não esconde a homenagem à raiz popular de Clementina de Jesus.

O enredo do CD vai deslizando para a construção de um mosaico, abrindo espaços para múltiplas inclusões. Uma delas é dirigida à palavra (Mama Palavra), cujas iniciais M e P também remetem à Música Popular. Se Clementina pode ser ouvida na faixa anterior, o mesmo se estende em Mama Palavra, numa quase explícita homenagem, a referências vocálicas de Gilberto Gil (de quem, a propósito, João se declarou seu “irmão mais novo”. Nessa composição, para a qual também concorre a competência do arranjador Jacques Morelembaun, fundem-se variações de momentos orquestrais com o reggae, sob o suporte expressivo de uma letra a atestar a maturidade poética de Francisco Bosco. O samba, com o mais contagiante e genuíno têmpero rítmico, comparece em Doce Sereia. A ele, João Bosco dedica a confissão de um encanto especial.

Prosseguindo na história de uma vida musical, os anos oitenta são lembrados na atmosfera meio bolerizada de Castigado Coração e Flor de Ingazeira, entremeados pela voz emprestada à malandragem da periferia no samba-rap Ditodos.

Quando se imagina que o painel do mosaico rítmico-musical estava contemplado, eis que irrompe a criação — talvez a mais vigorosa do CD — Beirando a Rumba. O que seria nada além de uma porta aberta para o Caribe, na verdade se revela uma requintadíssima composição de perfil autenticamente antropofágico. Trata-se de algo que, no âmbito da música popular mundial, apenas o Brasil, pela sua mistura cultural, sabe realizar.

Beirando a Rumba resulta de perfeita harmonia entre a construção musical e a sonoridade das palavras, reportando-nos a um tempo-espaço mítico no qual se inscreve o nascimento da brasilidade, a partir do recorte de um olhar que não o teve (nem o poderia ter) Pero Vaz de Caminha, na carta de fundação: “Grande cambará-preto / sabor de sarrabulho soou / no gogó /…/”. Como alerta o verso: “Na boca a pororoca explodiu”. Da revolução resultante do encontro das águas (ou, no caso, das culturas), nasce a beleza plural de um povo cujo perfil está condensado no refrão (“Ê ê ê ê ê / Aiaô aiaô aiaô aiaô /…/”). Há no refrão um dos mais ricos jogos de referências. O ritmo e a sonoridade vocal entoam, simultaneamente, um canto tribal, indígena que se soma ao mote inicial da famosa composição Karavan, inserida por João Bosco na trilha sonora Benguelê, composta para o Grupo Corpo (1999). Sem dúvida, a força desse refrão se intensifica quando se reconhecem nele as referências que o geram. Acresça-se a esse aspecto o condimento experimental por conta do arranjo, bem como do texto falado, ambos a insinuarem tanto a história vivida pelo Brasil quanto a inventividade capaz de tornar o país sempre uma promessa de redenção.

A nona faixa Siboney entra no enredo para pontuar outro cruzamento entre a latinidade e a influência da cultura árabe da qual os Bosco são herdeiros. Nesse enredo que conta a história de uma vida não poderiam faltar evocações épico- líricas de cenas de outrora, típicas de uma ambiência interiorana, tão familiares à infância de João. Essa é a moldura para o quadro musical de Cego Julião.

Todavia, temos de lembrar que a esquina é também ponto convergente do agora. Em seu nome, sob os auspícios da parceria com a palavra do jovem poeta, afirma- se o presente com o vigor de um otimismo que ajuda a continuar: Dia de Festa.

Apesar de todas as dificuldades que atravessam o país desde sempre, algo mantém seu povo em movimento: “Sol, porta-voz da manhã /…/”. O signo da alegria é parte dessa história. Seja como for, o Brasil é banhado pela solaridade. Com ela, ele prossegue…

A última faixa de Na esquina é dedicada a Amar, amar, uma versão de True Love. Uma vez mais comparece o registro de João Bosco que, ao longo da carreira, jamais desprezou citações emanadas de sua memória musical.

Na sua vasta discografia, estão referências que vão do erudito ao popular.

Ora esse recurso se inclina para a beleza do tanto que a música brasileira contém (Villa-Lobos / Ary Barroso, entre outros), ora seu olhar se fixa em outras culturas (Debussy / Cole Porter). É a subjetividade de João Bosco que, na solidão criadora de repetidas noites, entra em contato profundo com seu violão e daí a memória extrai singelezas.

Releituras, portanto, não são, na sua obra, ditadas por demandas de mercado. São, simplesmente, imposições estéticas que tomam conta de um ser. É nessa perspectiva que Strawinski e Tom Jobim (como em recriações anteriores) entram num diálogo familiar. É só isso. Na emoção de João Bosco, há lugar para todos. Afinal, João Bosco é parte da alma brasílica, ou seja, o uno e o múltiplo se irmanam em favor do pleno. Amar, amar é apenas mais uma dessas muitas rememorações, agora compartilhadas com o suporte poético que vem dos versos de Francisco Bosco.

Amar, amar , com a primeira faixa Passos de amador, fecha, circularmente, Na esquina. Da primeira à última, está o amor de quem caminha pelo mundo da (com e pela) música. Em Amar, amar, o tom intensamente lírico, sob a tutela de um arranjo de impecável suavidade, serve a um ato de fé que João destina para saudar seu encontro com a música: “Juntos, nós dois / a sós no jardim do amor / Noite /calma no céu/ só agora entendi / a razão de ser / de estar aqui / Amar, amar/ por você sofrer / por você sorrir /…/”. Aí está, de modo singelo, um profundo agradecimento por tudo que da música veio. Com ela, os milhares de aplausos pelas centenas de palcos. Com ela, também as dores que forçaram separações, adiaram afetos, tudo por conta de tantas viagens pela vida. Encontros e desencontros, tudo reunido, tudo relembrado numa esquina na qual, agora, o ser se pergunta: “Para onde devo ir?”

Ivo Lucchesi

A vida no fio da navalha

O novo trabalho de João Bosco faz o recente debate sobre a morte da canção parecer algo desde já superado, como uma discussão que serviu de incremento à crítica musical no Brasil, mas que já não serve como paradigma para se pensar o futuro.

É o álbum de um grande cantor, com domínio total da técnica, emoção na medida certa, um timbre pleno de brilho, áspero e cortante em sua doçura, cuja suavidade é mais uma de suas experimentações. É o disco de um grande instrumetista, ele mesmo uma escola do violão brasileiro, como, cada um a seu modo, João Gilberto, Baden Powell e Gilberto Gil. É o disco de um grande compositor, dono de uma linguagem própria, na qual as invenções melódicas e harmônicas soam simultaneamente espontâneas e requintadíssimas. A soma dos três criou sua história própria no vasto quadro da canção brasileira, e ganha agora, com Não vou pro céu mas já não vivo no chão, um acréscimo entusiasmador.
Só uma das parecerias com Aldir Blanc, “Navalha”, vale todas as comemorações possíveis pelo esperado retorno da dupla. O tema amoroso deságua na imagem de um Cristo crucificado, remetendo aos sofrimentos físico e espiritual, aos dramas e dilacerações do desejo que marcaram sobretudo o imaginário barroco. E, assim, a “paixão” de Cristo fala também da paixão do homem, reunindo numa única palavra-cravo o humano e o divino, a dor e o prazer, a luz e a escuridão, a vida e a morte. Não é por acaso que uma das parcerias com Francisco Bosco fale em primeira pessoa de uma “Alma barroca”. Barroca e mineira, poder-se-ia acrescentar. E, mais que isso, seria preciso notar o quanto a estética barroca de João Bosco, nesse novo álbum, dá-se como o barroco das igrejas das Minas Gerais: menos ornamental, austero, sutil nos seus jogos de claro-escuro, mais clássico portanto. A tortuosidade das linhas, a tensão entre massas e volumes, os dramas de luz e sombra e o culto formal surgem, então, sob o controle de uma economia voltada para o mínimo. Daí, ainda na canção “Navalha”, a voz, o violão de João Bosco e o contracanto do violão de Ricardo Silveira, criarem um ambiente de tensões sob controle e uma atmosfera mística, plena de sugestões.
Esse barroco suavemente erótico, melancólico, saudoso e a um só tempo intenso e mortal como uma lâmina pode ser visto ainda em outras imagens, como a do “teto

de igreja” na suavíssima canção de abertura, “Perfeição”, ou na pulsão de morte – ou melhor, de elevação, pela via do apagamento no vazio – da pungente “Desnortes”, na qual surge, outra vez, o Cristo – na paisagem do Rio – “levitando/ contra o céu”, e a dualidade dilacerante em afirmações como “sou atraído pelo infinito” e “tudo é febril, tudo quer ser, tudo lateja”. A letra de “Alma barroca” afirma: “Eu tenho o pé no chão/ e o coração no ar”. A de “Plural singular” fala do “não-ser virando ser”. E o título do álbum, retirado de “Sonho de caramujo”, funciona quase como uma palavra de ordem, declaração de princípios estéticos e existenciais: “Não vou pro céu mas já não vivo no chão”. Mesmo a paisagem é retratada na clave do paradoxo: “o sol/ o mar acende, prateado, quase glacial”. É na contradição e nas atrações paradoxais que se movem cuidadosamente os elementos constitutivos desse álbum. Sua alma barroca está aí, e não na ornamentação.

Tudo isso é apenas um dos modos possíveis de aproximação da complexidade e da beleza de Não vou pro céu mas já não vivo no chão. Aproximação que exige extremos ouvidos e atenção, já que estamos diante da vibração, da dor, da emoção, da alegria, de uma série de afetos, enfim, mas também do absoluto virtuosismo, num conjunto em que tudo é matematicamente preciso, em que a respiração se confunde com a voz, a voz com a pele, o corpo com o instrumento, o significado com o som. E se parece contraditório o vigor emotivo caber no rigor, na economia do mínimo, a audição reconhece facilmente uma unidade excepcional, que tende à concisão. É o que soa inequívoco em cada faixa.
O canto não perde sequer uma fração das sílabas. As canções, assim, brilham intensamente como fala, ou ainda, as letras materializam-se arquitetonicamente e seus sentidos emergem em absoluto equilíbrio com a música. Tudo soa exato como uma navalha. Poderia ser esse o título do álbum: “Navalha”. Porque tudo nele é, como uma lâmina, cortante: as canções, as cordas, o canto, os arranjos. Como na célebre imagem de João Cabral de Melo Neto, temos “uma faca só lâmina”: não há aproximar-se dela sem se ferir, não existe uma área segura, um mínimo lugar fora da intensidade e da beleza.

Basta ouvir “Tanto faz”, parceria de João com o filho, Francisco Bosco. A elegância do canto, preciso, reto, soa como o depoimento de uma vida em que não cabe mais qualquer ilusão. Um desabafo, que soaria sentimental decerto, não fosse a sua extrema força cética, seu senso de liberdade: “Eu vou partir/ Saio do jeito que eu vim/ Sem pedir nada a ninguém/ Sem nada pedir”. Só que, mais uma vez, a

contradição traz seu brilho de adaga quando, ao final, o vocalize lancinante – queixume, gemido, quase um grito – parece desmentir as palavras que diziam apenas das certezas, da lucidez e da ética imperturbável. Explosão e contenção, portanto, confundem-se numa dinâmica musical que em tudo lembra os grandes clássicos do samba carioca. Mas “Tanto faz” é mais que alusão ou homenagem, pois não seria difícil dizer que ele próprio é, desde já, um clássico.
Há mesmo em muitos momentos do álbum uma espécie de veio histórico a sustentar as canções, e que, ao mesmo tempo, é sustentado por elas. Refiro-me, por exemplo, a uma história do samba – dos anos 30 a João Gilberto – que parece soar nas harmonias de “Navalha”.

Do mesmo modo, “Pronto pra próxima”, inspirada parceria com Carlos Rennó, afigura-se como uma homenagem sutil a Orlando Silva, Gershwin e Tom Jobim. E é assim que outra parceria com Rennó, “Pintura”, tem uma leveza e um ritmo que remetem a Caetano e João Donato.

“Desnortes” é uma espécie de canção praieira carioca, contemporânea, com algo de Chico Buarque e Antonio Cicero, que faz um tocante retorno às serestas, ao mesmo tempo em que cita Caymmi num dos mais belos momentos do álbum.
“Mentiras de verdade”, da dupla Bosco-Blanc, é, por sua vez, um samba-canção de corte tradicional que parece apontar para Tito Madi, com seus sambas de harmonização moderna que tanto influenciaram a bossa nova. Também a letra de Aldir Blanc tem a elegância densa e a desilusão melancólica de “Chove lá fora” ou “Cansei de ilusões”. Mas a atmosfera não estaria completa sem o baixo de Jorge Helder, a guitarra de Ricardo Silveira, a bateria de Jurim Moreira e o violão de João Bosco.

Citação mais explícita talvez, tem lugar em “Jimbo no jazz”, espetacular parceria com Ney Lopes. O homenageado, Ray Charles, é lembrado nos vocais que abrem a canção, mas também no violão rítmico e na harmonia jazzística. Se a referência parece surpreendente, faz-se necessário ouvir, entre outras, “Bate um balaio ou Rockson do Pandeiro”, de Gagabirô (1984) ou Cabeça de nego (1986). Este último, sem dúvida, um dos discos mais experimentais da música brasileira, no qual emerge uma África inventada pela colagem de funk, samba, jazz, blue, umbanda, choro e rock and roll, com especiais referências a Bill Haley e seu “Rock around the clock”. Aqui, em “Jimbo no jazz”, soam clássicos de Ray Charles como “I got a woman”, “Don’t set me free” ou “What’d I say”. A lição – a mesma das canções de

Cabeça de nego – é ainda mais clara que a homenagem: “o jazz o samba e a milonga e o tango e candombe/ E a rumba e o mambo, tudo é lá do Congo”. O tributo maior é prestado, nessa declaração de universalidade da música negra, traduzida, digamos assim, na própria letra percussiva dessa canção que é praticamente um trava-língua, cheia de humor e balanço: “então, o samango, mondrongo, mubungo, piongo/ largou da rezinga e caiu no fandango”. Na historieta narrada pela canção, o personagem síntese de tudo só poderia ser um músico, Jimbo, o trombonista a quem cabe mostrar com a própria música que o jongo é um jazz, ou ainda, que tudo é África.

A presença africana é mais marcante porém, na deliciosa “Tanajura”, pelo ritmo, mas também pela guitarrada afro, miúda e dançante dos violões de João e Ricardo Silveira em feliz aliança com a percussão sutil mas expressiva de Robertinho Silva e Armando Marçal.
A conversa jazzística prossegue com a balada “Plural singular”, intimista, coltraneana, quando, mais uma vez, o quarteto formado por Jurim Moreira, Jorge Helder, Ricardo Silveira e João Bosco alcançam uma sonoridade sofisticada e quente, destacando-se um belíssimo improviso jazzístico.

O belo samba de Serafim Adriano, “Ingenuidade”, não deixa de ser uma sutil homenagem a Clementina de Jesus, referência absoluta de João Bosco, já que a canção foi gravada por ela no disco Clementina de Jesus (1976), com participação de Carlos Cachaça, onde ela também canta “Incompatibilidade de gênios”, de Bosco e Blanc. Na gravação de Não vou pro céu… canto e violão, aqui, sublinham o lirismo, o colorido suave e a simplicidade sofisticada do samba de Serafim Adriano (uma leitura oposta, portanto, à de Caetano em Zie e Zii, tão cerebral quanto sinuosa e áspera).
O despojamento de “Ingenuidade” tem seu contraponto imediato em “Alma barroca”, trabalhada, densa, espinhosa, com canto e violão excitados e bem desenhados em curvas ascendentes.

Ao encerrar o álbum, “Sonho de caramujo”, parceria com Aldir Blanc, funciona como uma espécie de profissão de fé: um rito que sinaliza claramente uma orientação, que atesta um desejo e um compromisso. A brevidade da letra contraria o que se espera do formato samba-enredo, assim como a afirmação de uma intimidade, de quase um fechamento – “eu moro dentro da casca do meu violão” –, contradiz a tendência coletivista do gênero. A extroversão do canto, num registro altíssimo, parece levar ao paroxismo a interpretação dos cantores de escolas-de-samba, enquanto a escolha do acompanhamento – dois violões apenas – outra vez quebra a expectativa

da óbvia presença de uma percussão, aqui reduzida a poucas batidas na madeira do violão, gesto com o qual o instrumentista “caramujo” assevera o valor e a totalidade de sua casa-casca. Mas se a letra, invertendo os sinais do samba-enredo tradicional, narra uma história pessoal, em primeira pessoa, lá está, no entanto, a paisagem exótica, bem ao gosto dos carnavalescos: “E eu andando de elefante em Bombaim”. Paisagem inventada, fruto da imaginação, pode-se dizer, portanto, que este samba é uma exaltação do livro e da leitura, que dialoga em registro popular com um clássico de Castro Alves, “O livro e a América” (“Bendito o que semeia/ Livros… livros à mão cheia…/ E manda o povo pensar!/ O livro caindo n’alma/ É germe — que faz a palma,/ É chuva — que faz o mar (…)”. Livro e violão se equivalem, são moradas essenciais, intestinas, sim, mas que abastecem a fantasia e alargam horizontes de tempo e espaço.

Assim, na concha do violão de João Bosco parece ecoar a história do samba, da música brasileira, da música negra norte-americana, caribenha, as músicas anônimas das velhas Gerais e da Cidade do Salvador, mas também os Beatles e, por fim, toda a obra musical do próprio Bosco com seus parceiros, cabendo destacar, sem dúvida, este magnífico Aldir Blanc, e a certeza de um novo grande letrista: Francisco Bosco. Tudo se dobra e se confunde numa espiral – outra vez, o barroco – com voltas e giros onde sombra e luz dão corpo e alma a canções que reafirmam a vida e expulsam a morte para muito longe.

Eucanaã Ferraz

Life on the razor‘s edge

The new work by João Bosco makes the recent debate about the death of melody looks hopelessly outdated, as a discussion that served as increment to Brazilian music reviews, but which no longer serves as a pattern to think the future.

It‘s the album of a great singer, with total mastery of the technique, well-dosed emotion, a bright tone of voice, yet harsh and sharp in its docility whose softness is just one of its experiments. It‘s the album of a great musician, himself symbolizing a school of Brazilian guitar, similar to, in their own way, João Gilberto, Baden Powell and Gilberto Gil. It‘s the album of a great composer, who owns a unique language in which melodic and harmonic inventions sound simultaneously spontaneous and extremely elegant.
Summing up the three resulted in his own story within the large scope of Brazilian music which gains now, with Não vou pro céu mas já não vivo no chão (Not heading to heaven but no longer living on the ground), an stimulating increment.

One of the songwriting partnerships with Aldir Blanc, ―Navalha‖, is worth all possible celebration for the duo long-awaited comeback. Love theme flows into the image of a crucified Christ, referring to physical and spiritual suffering, to drama and desire laceration, which have distinctively characterized the baroque imaginary. Therefore, the
‗passion‘ of Christ also refers to the passion of men, enclosing within one word-nail human and divine, pain and pleasure, light and darkness, life and death.
It‘s not by chance that one of the partnerships with Francisco Bosco has a first person view of a ―Baroque Soul‖.

Baroque and from Minas Gerais, we might add. Moreover, it‘s essential to notice how much João Bosco‘s baroque aesthetic , in this new album, arises just like the baroque of the churches from Minas Gerais – less elaborate, severe, subtle in its bright-dark games, hence more classic. Tortuous lines, tension between masses and volumes, dramas of light and shadow and the formal cult emerge, then, under the control of an economics focused on the least.

And so, still on the track ―Navalha‖, the voice, the guitar of João Bosco and the countermelody of Ricardo Silveira‘s guitar, create an atmosphere of controlled tensions yet mystic, full of suggestions.

Such baroque slightly erotic, melancholic, nostalgic and, at the same time, intense and deadly as a blade could still be felt in other images, as ‗the church ceiling‘ in the very gentle opening track, ―Perfeição‖, or in the drive towards death – better yet, towards elevation, through fading in emptiness – of the moving ―Desnortes‖, in which the Christ once again, emerges – in Rio de Janeiro‘s landscape – ―levitating/against the sky‖, and the shattered duality in statements like ―I‘m attracted by infinite‖ and ―all is feverish, all wishes to be, all pulses‖. Lyrics of ―Alma barroca‖ states:
―My foot is on the ground/ my heart in the air‖. The track ―Plural singular‖ talks about
―not-being becoming being‖. And the album title, taken from ―Sonho de caramujo‖, works almost like a catch phrase, declaration of aesthetics and existential principles: “Não vou pro céu mas já não vivo no chão‖. Even landscape is portrayed in paradox key: ―the sun/ ocean lights up, silver, almost glacial‖. It‘s in contradiction and paradox

attractions that carefully move the constitutive elements of this album. Its baroque soul is found there and not in the adornment.

All of this is just one of the many possible ways to get closer to the complexity and beauty of Não vou pro céu mas já não vivo no chão. Closeness that demands extreme ears and attention, as we face vibration, pain, emotion, joy, in short, a series of affections, but also of the absolute virtuosity, in a set where everything is mathematically precise, in which breathing mingles with the voice, voice with the skin, body with the instrument, meaning with the sound. And if it sounds contradictory that emotional vigor is contained in rigor, in the economics of the least, the ears easily recognize an exceptional unity which tends to concision. That‘s what sounds absolute in every single track.

Singing does not miss a fraction of the syllables. Therefore, the songs intensively shine as a speech; beyond, the lyrics architectonically materialize themselves and their meaning emerge in absolute balance with the music.

Everything sounds as sharp as a razor. That could be easily the album‘s title:
―Navalha/Razor‖. Because everything within it is like a blade, sharp – the songs, the strings, the singing, the arrangements. Similar to the renowned image by João Cabral de Melo Neto, we‘ve got ―a knife all blade‖: no choice of getting near without getting hurt, no safe area, no tiniest spot outside intensity and beauty.

Just listen to ―Tanto faz‖, partnership with his son, Francisco Bosco. The elegance in the singing, precise, straight, sounds like a statement of a life in which no illusion could fit anymore. An outflow, that would definitely sound mellow, if it wasn‘t for its extreme skeptical force, its sense of freedom: ―I will leave/ Just as I‘ve come / Asking nothing / From nobody‖. But, once again, contradiction brings its shine of dagger when, at the end, sharply vocalizes it – whining, crying, almost a shout – almost denying the words that spoke only of certainty, reason and stolid aesthetic. Explosion and contention, therefore, mix into a musical dynamic where always reminds us of great classics of original sambas from Rio de Janeiro. But ―Tanto faz‖ is more than an allusion or tribute, we might even say that it‘s already a classic.

There are, in many moments of the album, a kind of historical vein supporting the songs, which is, at the same time, supported by them. I refer, for instance, to the history of samba – from the 30‘s to João Gilberto – which seems to emerge in the harmonies of
―Navalha‖.

Similarly, ―Pronto pra próxima‖, a gifted partnership with Carlos Rennó, appears as a subtle tribute to Orlando Silva, Gershwin and Tom Jobim. The same way, another partnership with Rennó, ―Pintura‖, presents the delicacy and rhythm that reminds Caetano and João Donato.

―Desnortes‖ is a typical beach song from Rio de Janeiro, modern, with hints of Chico Buarque and Antonio Cicero, making a touching return to the serenades, at same time mentioning Caymmi in one of the most beautiful moments of the album. ―Mentiras de verdade‖, by Bosco-Blanc, is in its turn, a samba-canção of traditional cut which seems to point at Tito Madi and his sambas of modern harmonization that deeply influenced bossa nova. Aldir Blanc‘s lyrics present the dense elegance and melancholic

disillusion of ―Chove lá fora‖ or ―Cansei de ilusões‖. But the setting wouldn‘t be complete without the bass of Jorge Helder, the guitar of Ricardo Silveira, the drums of Jurim Moreira and the guitar of João Bosco.

More explicit quotation, maybe, is ―Jimbo no jazz‖, outstanding partnership with Ney Lopes. The tribute to Ray Charles is recalled in the vocals that open the song, and also in the rhythmic guitar and the jazzy harmony. If the reference seems unexpected, it‘s mandatory to listen to, among others, ―Bate um balaio or Rockson do Pandeiro‖, by Gagabirô (1984) or Cabeça de nego (1986). The latter, no doubt, is one of the most experimental albums of Brazilian music in which emerges an invented Africa through a collage of funk, samba, jazz, blue, umbanda, choro and rock and roll, with special references to Bill Haley and his ―Rock around the clock‖. Here, in ―Jimbo no jazz‖, Ray Charles‘ classics resonate, such as ―I got a woman‖, ―Don‘t set me free‖ or ―What‘d I say‖. The lesson – the same lesson as Cabeça de nego‘s songs – is even more clear in the tribute: ―the jazz the samba and the milonga and the tango and candombe/ And the rumba and the mambo, they all come from Congo‖. The greatest tribute is paid, in this declaration of black music universality, translated, let‘s say, in the own percussive lyrics of this song which is basically a tongue twister, full of humor and swing: ―entao, o samango, mondrongo, mubungo, piongo/ largou da rezinga e caiu no fandango”. In the little tale narrated in the song, the character who synthesizes everything could only be a musician, Jimbo, the trumpet player who is in charge of showing with his own music that jongo is jazz, better yet, that everything is Africa.

Thou, the African presence is more remarkable in the delicious ―Tanajura‖, for its rhythm, but also for the afro guitar, short, dancing by João and Ricardo Silveira in a happy association with a subtle but expressive percussion by Robertinho Silva and Armando Marçal.

The jazzy conversation proceeds in the ballad ―Plural singular‖, intimate, coltraneish, when, once again, the quartet assembled by Jurim Moreira, Jorge Helder, Ricardo Silveira and João Bosco reach a sophisticated and warm sonority, with emphasis to a delightful jazzy jam.

The lovely samba by Serafim Adriano, ―Ingenuidade‖, could be seen as a subtle tribute to Clementina de Jesus, absolute reference to João Bosco, once the song was recorded by her in the album Clementina de Jesus (1976), featuring Carlos Cachaça and where she also sings ―Incompatibilidade de gênios‖, by Bosco and Blanc. In the recording of Não vou pro céu… singing and guitar, clearly, underline lyricism, smooth colors and sophisticated simplicity of Serafim Adriano‘s samba (an opposing reading from Caetano‘s Zie e Zii, so cerebral and yet so sinuous and rugged). The simplicity of
―Ingenuidade‖ has its immediate counterpoint in ―Alma barroca‖, crafted, dense, prickly, with voice and guitar as excited as well designed in ascending curves.

Closing the album, ―Sonho de caramujo‖, partnership with Aldir Blanc, works as a kind of profession of faith – a rite which clearly signalizes guidance, testifying a desire and a commitment. The shortness of lyrics goes against what is expected from a samba- enredo format, as well as the affirmation of an intimacy, almost closeness – ―I live inside the shell of my guitar‖ –, denies the collective tendency of the genre. The singing extroversion, in a very high register, seems to take to a paroxysm the interpretation of samba school singers while the choice of accompaniment – just two

guitars – once again breaks the expectation of the obvious presence of a percussion, here reduced to a few bangs on the guitar wood, gesture with which the ‗ snail‘ musician ensures the value and the totality of his home-shell. But if lyrics, inverting the signals of traditional samba-enredo, narrates a personal story, in first person, there is, however, the exotic landscape, to please carnival makers: ―…riding an elephant in Bombay‖. Invented landscape, fruit of imagination, we may then say, that this samba is a homage to the book and to reading, that dialogues in popular register with Castro Alves‘ classic,
―O livro e a América‖ (―Holy is the one who sows / Books…a handful of books…/ And order people to think!/ The book falling upon the soul/ It‘s germ — that makes the palm,/ It‘s rain – that fills the ocean (…)‖. Books and guitars are similar; they‘re essential shelters, intestines, yes, but providing fantasy and enlarging horizons of time and space.

Hence, in João Bosco‘s guitar shell it seems to echo the history of samba, of the Brazilian music, of the black music from the US, from the Caribbean, anonym music from ancient Gerais and the City of Salvador, as well as the Beatles and, at last, the whole musical work of Bosco himself along with his partners, highlight given, no doubt, to this magnificent Aldir Blanc and the assurance of a new great lyricist, Francisco Bosco. Everything gets bent and confused into a spiral – once again, the baroque – with twists and turns where shadow and light give body and soul to songs reaffirming life and driving death very far away.

Eucanaã Ferraz

João Bosco Ao Vivo – Obrigado, gente!

Neste ano de 2006, João Bosco completa 60 anos. São mais de trinta anos de carreira, desde o início orientada por um imperativo estritamente artístico, passando ao largo de oportunismos, modismos e afins. A ética musical de João Bosco sempre teve uma única lei, parágrafo único: a invenção. Seu compromisso com a canção popular é marcado pela firmeza de uma obra que atravessa décadas preocupando-se fundamentalmente com o próprio fazer da canção: melodia, ritmo, harmonia, letra, canto – a grande tradição da canção popular brasileira.

A importância histórica da data foi comemorada de forma inédita: com a gravação do primeiro DVD de João Bosco. O repertório de João Bosco Ao Vivo – Obrigado, gente!, é composto por alguns de seus memoráveis clássicos (os sambas da década de 70, a incontornável parceria com Aldir Blanc, os sucessos românticos dos anos 80/90, como “Memória da Pele”, “Desenho de Giz”, “Papel Maché”, etc.), todos em arranjos depurados através dos

muitos anos de intimidade com as canções. O público de João Bosco sabe que sua mineirice é restrita ao âmbito particular, pois ele é, definitivamente, um artista de palco, um artista cuja obra cresce no palco. Assim, João devia esse DVD àqueles que o têm acompanhado ao longo de sua carreira, bem como aos novos admiradores, para que todos tenham registrada a excelência de sua performance. Com participações especiais de Djavan, Guinga, Hamilton de Hollanda e Yamandu Costa, o DVD (uma co-produção do selo MP,B, da gravadora Universal e do Canal Brasil) foi gravado nos dias 15 e 16 de fevereiro no novo teatro do Ibirapuera, em São Paulo. Simultaneamente ao DVD, o projeto também chega às lojas no formato CD, contendo 16 faixas.

A formação com naipe de metais (além do quinteto de base formado por baixo, bateria, guitarra, percussão e o violão de João Bosco) revela-se uma escolha acertada, tanto nos sambas sincopados, como “Incompatibilidade de Gênios”, “Linha de Passe” e “Coisa Feita”, quanto nas baladas, como “Jade”, “Quando o Amor Acontece” e “Papel Maché”. Perpassa quase todos os arranjos um equilíbrio entre a forma canção e uma inventiva elaboração instrumental cujos caminhos surpreendentes nunca põem em risco a simplicidade essencial da canção. Ouça-se, a este respeito, faixas como “O Ronco da Cuíca”, “Odilê, Odilá”, ou o pot-pourri “Quilombo / Tiro de Misericórdia”. A propósito desse último, o arranjo, marcado por uma guitarra que procede por estocadas e a bateria explosiva de Kiko Freitas, revela com ainda maior expressividade a violência urbana brasileira em sua encruzilhada de raças, religiões e processos históricos.

São ainda notáveis as participações, especialíssimas, dos artistas convidados. Tocando publicamente com João Bosco pela primeira vez, Guinga comenta ao violão, elegantemente, a bela canção “Saída de Emergência”. Yamandu Costa traz seu virtuosismo impetuoso para o samba-choro “Benzetacil”, combinando humor, malícia e invenção num samba buliçoso daqueles em que se pode ler a alma brasileira. O também virtuose Hamilton de Hollanda empresta seu bandolim para o clássico “Linha de Passe”, num jogo de cordas que mais parece um Fla-Flu dos áureos tempos:   jogo   aberto,   placar   elástico,   artilheiros se consagrando. Finalmente, Djavan canta, com a mestria habitual, “Corsário”, em encontro emocionante com João Bosco.

Pelo ineditismo dos arranjos, pela excelência das canções, pela performance dos músicos e do compositor, pela abrangência de seu universo musical, pelo retrato da cultura brasileira, este trabalho deve ser considerado uma obra de referência, para os amigos novos e antigos de seu cancioneiro, na trajetória musical de João Bosco.

João Bosco estréia show do novo cd – Malabaristas do Sinal Vermelho

O novo disco de João Bosco, Malabaristas do Sinal Vermelho, vem sendo saudado pela crítica de música como um dos melhores discos de sua carreira e um dos melhores trabalhos na música popular brasileira dos últimos anos. Nesse disco, lançado em janeiro de 2003, João Bosco celebra 30 anos de carreira bem à sua maneira: com um repertório de canções inéditas (todas as faixas do disco são, à exceção da versão, muito pessoal, para Andar com Fé, de Gilberto Gil).

Mas não por acaso o disco foi batizado pela expressão “retrospectiva de inéditos”; pois essas novas canções trazem ao público, em plena forma, a já conhecida forma de João Bosco: o samba azeitado (Terreiro de Jesus), o samba-canção (Não me Arrependo de Nada), a ironia e o humor ácido (Jogos de Arrasar e Benzetacil), a canção de cunho social (Malabaristas do Sinal Vermelho), a cabeça de nego (a referida versão para Andar com Fé).

Essas canções, inéditas e, de certa forma, conhecidas, juntam-se a muitas outras de um repertório consagrado nesse show que comemora, inventivamente, 30 anos de carreira. Assim, não poderiam faltar algumas pérolas de sua parceria com Aldir Blanc, como Nação, Tiro de Misericórdia, A Nivel de; tampouco canções como Memória da Pele, Jade, Quando o Amor Acontece e Papel Maché. Entre outros sucessos gravados na memória do público.

Para apresentar esse show, João Bosco conta com o apoio dos seguintes músicos: Nelson Faria (guitarra e violões), Kiko Freitas (bateria) e Ney Conceição (baixo) – os dois primeiros tendo feito parte do elogiado show Na Esquina, registrado em disco (João Bosco Ao Vivo). Não faltará também, para os apreciadores da riqueza de seu violão acústico, um set solo, onde João canta sambas clássicos e outras canções que moram na intimidade da voz com o violão.

Senhoras do Amazonas – João Bosco & NDR BigBand

Depois que o último acorde majestoso de “Senhoras do Amazonas” se dissipou no estúdio, João colocou sua guitarra de lado, riu e deixou escapar: “Nem acredito!” Esse momento resume toda a história deste CD. E eu vou concordar com João. Em 2007, quando pedimos a ele para fazer uma turnê pelo Brasil com a NDR Bigband, nunca pensamos que três anos depois o resultado estaria bem aqui nas nossas mãos.

A primeira pergunta que tínhamos que enfrentar era: como orquestrar a música de um cara que não é apenas um dos maiores cantores-compositores, mas também um guitarrista fantástico que, sozinho, pode facilmente encantar e eletrizar uma plateia? Decidimos não utilizar música de fundo para o João, mas de alguma forma combinar sua mistura exclusiva de samba, rock e jazz com os recursos de uma orquestra de jazz contemporâneo europeu e seus solistas individuais. Com a ajuda dos contrabaixos incríveis de Ney Conceição e dos tambores impressionantes e inspiradores de Kiko Freitas, em alguns momentos a NDR Bigband de fato alcançou a energia de um vigoroso grupo de samba.

Este CD integra algumas das muitas personas de João Bosco: sua “africanidade” (a faceta afrobrasileira baseada no samba, como em “Nação”), sua faceta de rock’n’roll (“Bate um Balaio”), sua extraordinária sensibilidade para baladas (“Saída de Emergência”) e seu surpreendente talento como cantor de jazz. João pode transformar facilmente uma canção em uma aventura; basta ouvir seu “Desafinado” cheio de improvisos. Com sua última composição e duas outras canções, prestamos também um tributo ao grande Antonio Carlos Jobim, um grande amigo e fonte de inspiração para o João. Foi Maria Schneider quem sugeriu incluir a canção título, “Senhoras do Amazonas”, neste projeto, e assim fizemos. Essa é para você, Maria! A maior parte das canções originais de João provém de sua colaboração com Aldir Blanc, simplesmente uma das parcerias mais criativas da história da música popular brasileira. Essas canções falam de vida real e de pessoas reais, de bons e maus momentos mas, como todo verdadeiro artista, eles conduziram as histórias para um nível acima e além da realidade; graças à sensibilidade de Blanc pela poesia dos ritmos e à sensibilidade de João pela musicalidade das palavras. E esse é o grande motivo pelo qual essa música soa tão atual, mesmo tendo passado algumas décadas.

Outro motivo é o incrível talento de Steve Gray como arranjador e sua capacidade de criar empatia. Steve chegou ao âmago das coisas e transformou tudo em algo novo. Honestamente, eu não sabia que ele era fã da música de João até pedirmos para ele participar do projeto: “É claro que eu quero! Juntamente com AI Jarreau, João é meu cantor predileto”, disse Steve. Sem dúvida, essa foi uma precondição perfeita. É uma pena que Steve nunca tenha tido a chance de ouvir o resultado de seu trabalho, pois ele faleceu logo após o início das gravações. Mas estou muito feliz com o encontro dele com João. Lembro-me de Steve sentado no canto do estúdio enquanto João cantava, sorrindo de maneira misteriosa, como ele sempre fazia quando estava feliz. O arranjo foi feito no estilo dos grandes compositores clássicos: desenvolvendo uma ideia após a outra, quase sem repetições, nem o menor dos motivos. É por isso que a música pode crescer a cada execução. E como ocorre com os grandes mestres, Steve fazia coisas complexas parecerem muito simples. Músicos e apreciadores podem literalmente “mergulhar” nas harmonias criadas por ele. Por fim, do encontro entre João Bosco, Steve Gray e a NDR Bigband, tentamos redescobrir e oxalá reinventar um importante capítulo da música brasileira. Sei que pode parecer ousadia, mas como João diz: “É esse o sentido da arte: ousar coisas novas, todos os dias”.

Stefan Gerdes

Senhoras do Amazonas – João Bosco & NDR Bigband

After the last majestic chord of “Senhoras do Amazonas” has faded away in the Studio, Joao puts his guitar aside, laughs and blurts out: “I don’t believe that! ” That little moment sums up the whole story of this CD. And I have go agree with Joao. When we asked him in 2007 to do a tour in Brazil with the NDR Bigband, we never thought that three years later the result would be right here in our hands.

The first question we had to deal with was: how can you orchestrate the music of a man who is not only one of the greatest singer-songwriters, but who is also a fantastic guitarist and can easily enchant and electrify the audience alone, just by himself? We decided not to play background music for Joao but to somehow meet him in the middle: to combine his unique mixture of Samba, Rock and Jazz with the possibilities of a contemporary European Jazz orchestra and its individual soloists. With the help of Ney Conceicao’s groovy bass lines and Kiko Freitas’ breathtaking and inspiring drumming the NDR Bigband sometimes really reached the energy of a steaming Samba band.

This CD integrates a few of the many sides of Joao Bosco: his ” africanidade” — the afro-brazilian, samba based side (like in “Nagao”), his Rock’n’Roll side (“bate urn balaio”), his wonderful sense for ballads (“Saida de Emergencia”) and his astonishing talent as a Jazz singer: Joao can turn a song easily into a adverturous journey (just listen to his scatting o “desafinado”). With this latter composition and two other songs we also payed tribute to the great Antonio Carlos Jobim, one of Joao’s dear friends and heroes. It was Maria Schneider who suggested to include the title song, “Senhoras do Amazonas”, in this project. So we did (this one’s for you, Maria!). Most of Joao’s originals derive from his collaboration with Aldir Branc — simply one of the most creative teams in the history of the MOsica Popular Brasileira. Their songs tell about real life and real people, about their good and hard times, but like any true artist they uplift the stories to a level above and beyond reality — thanks to Blanc’s feeling for the poetry of rhythms and Joao’s feeling for the musicality of words. And that is one big reason why this music still sounds so fresh, even after decades.

Another reason is Steve Gray’s incredible talent as an arranger and his empathetic abilities: Steve reached the core of things and turned it into something new. To be honest, I didn’t know that he was a fan of Joao’s music until he was asked to join in: “Of course I’d love to”, he said,”next to Al Jarreau, Joao is my favorite singer!” That was indeed a perfect precondition. It is so sad that Steve never had the chance to listen to the result of his work. He died shortly after the beginning of the recordings. But I am very glad that Steve and Joao did meet. I remember Steve sitting in the corner of the studio while Joao was singing, smiling whimsically as he always did, when he was happy. He arranged the music in the style of the great classical composers, developing ideas after ideas, hardly ever repeating anything, not even the smallest motif. That’s why the music can grow with every listening. And like all the great masters, Steve could make complex things sound so easy. Musicians and listeners can literally “bathe” in the harmonies he created. So in the end with the meeting of Joao Bosco, Steve Gray and the NDR Bigband we tried to re-discover and hopefully re-invent an important chapter of Brazilian music. I know this might sound daring, but like Joao says: “That’s what art is about: to dare new things every day”

Stefan Gerdes

Trem Bala Agnus Sei Por Um Sorriso Dois pra lá Dois pra cá Incompatibilidade de Genios Genesis (Parto) Falso Brilhante Linha de Passe Tal mãe, Tal filha Angra Profissionalismo é isso ai Escadas da Penha Bate um Balaio ou Rockson do Pandeiro Cabaré Coisa Feita Malabaristas do Sinal Vermelho Siri Recheado e o Cacete Tristeza de uma embolada Amar, Amar Quilombo Si Si No No Ditodos O Mestre-sala dos Mares As Minas do Mar Granito Desnortes Holofotes Indeciso Coração Querido Diário Forró em Limoeiro Se Você Jurar Calango Rosa Papel Machê Pixinguinha 10x0 Beirando a Rumba Kid Cavaquinho Perversa Mama Palavra Cinema Cidade Incompatibilidade de Gênios Bala com Bala - Edu Lobo Pronto pra próxima
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